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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

E de repente descobriram... a formação!


"A pandemia (do grego «de todo o povo» – restará agora definir o que é «o povo»), com todas as suas restrições, os seus confinamentos, os seus distanciamentos, levou à descoberta de realidades que andavam ou escondidas ou ignoradas.
Temas como “a função educativa do desporto” ou “o carácter educativo do desporto” ou “os valores do desporto” regressaram à ribalta. Clichés como “o desporto é muito mais que saúde, bem-estar e lazer, o desporto é educação” voltam ao nosso quotidiano na tentativa de demover governantes – aqueles que dizem “não temos conhecimento de nenhum clube que tenha fechado portas” – a recolocarem o público nos estádios (recolocado que está na Fórmula Um), a permitirem que as escolas de formação de futebol dêem continuidade ao seu ‘métier’, a autorizarem a reabertura de academias e ginásios e a consentirem a prática dos desportos de contacto – não aquele contacto das comemorações do golo do futebol, mas aquele contacto de oposição, de luta, de combate.
Resta discernirmos se esta preocupação se prende de facto com a formação do carácter do ser humano, com a transmissão de valores positivos, com a saúde dos jovens praticantes (não só corporal mas também com a sua saúde social, emocional e mental), se se prende com o desenvolvimento psico e sociomotor da criança, do atleta, do jogador, do desportista, se se relaciona com o aperfeiçoamento do gesto técnico e da preparação táctica com vista à competição, ou se esta preocupação revela outros contornos.
Na página online «fairplay.pt» Francisco Isaac propõe o seguinte exercício matemático “fácil para compreender e perceber o impacto económico e social usando o rugby como exemplo: imaginemos que 50% dos atletas jovens (entre os 6 e 18 anos) deixam de estar ligados à modalidade, perdendo-se quase 3000 inscritos num só ano. Se cada inscrito pagar 350€ ao seu clube – uma média geral para o que os emblemas nacionais aplicam no acto de inscrição no início de época – dá-se uma perda imediata de 1.050,000€ (sim, leram bem… 1 milhão de euros), que significa um buraco na saúde orçamental dos clubes e por conseguinte da federação.”
E Francisco Isaac continua o seu exercício: “O mais grave desta matemática é a seguinte equação adicional, que passa pelo abandono de jogadores e a perda total de inteiras gerações, pois mesmo que alguns atletas permaneçam, estes não podem competir e pôr em prova as suas capacidades, sendo testados até ao limite em termos de durabilidade mental para aguentar treinos de distanciamento durante uma época inteira (quando nas actividades escolares vão andar sempre lado-a-lado com os seus colegas…).
Se avançarmos três ou quatro anos no tempo, abrem-se consecutivas falhas nas equipas de formação seja nos sub-8/10/12/14/16/18 e seniores, colocando o rugby português no limiar de um abismo que será impossível de evitar. A qualidade individual e de jogo vai cair abruptamente, o rugby (e qualquer outra modalidade afectada pelas “recomendações” da DGS) vai sofrer um retrocesso quase sem precedentes e o apoio estatal será quase zero, independentemente da cor política ou partido que esteja no seu poder (quando actualmente já o é) – desde Março até Agosto de 2020 só por uma vez o primeiro-ministro de Portugal falou sobre a situação desportiva portuguesa.”
Desta análise de uma modalidade, e que poderemos extrapolar para muitas outras, retiramos duas ilacções. A primeira, económica. A segunda, social. Seria uma análise completa se da mesma conseguíssemos tirar mais uma ilacção, que passaria necessariamente por ser do foro pedagógico...
Em relação à primeira, recorre-se aos parâmetros educativos do desporto e aos seus valores formativos para se garantir uma subsistência monetária. Releva a fonte de rendimentos de clubes, academias e ginásios, com o subsequente suporte de patrocinadores (em suma, o negócio!). Em relação à segunda, continua-se a propalar as virtudes da prática desportiva mas o objectivo final é o da competição-espectáculo (que não deixa também de ser económico) a qual nada tem a ver com essas virtudes. 
Olvida-se no entanto, aqui, o papel do treinador dos escalões de formação (as suas competências pedagógicas) e a sua subsistência em termos salariais. E se a grande maioria das modalidades competitivas vive para o resultado, se muitas crianças e jovens há a treinar de uma forma desmesurada (treino intensivo precoce), percebe-se a preocupação dos treinadores em termos da sua visibilidade através dos troféus para além do seu ganha-pão. Mas existem modalidades (ou sectores de algumas modalidades) em que a formação é exactamente isso: o desenvolvimento harmonioso do ser humano e o seu apetrechamento de capacidades de resposta a diferentes situações, de esquemas de comportamentos e respectiva associação entre eles. É precisamente nestas que o treinador mais para trás fica, mais ignorado é, quer seja por falta de interacção com os seus colegas dado não se enquadrar num quadro competitivo quer seja pela inexistência – ou inoperância – de estruturas associativas que o possam representar. Encerram-se assim, principalmente, academias e ginásios devido às restrições impostas.
E torna-se irrelevante que o desporto seja incluído na versão final da Visão Estratégica para o Plano de Recuperação de Portugal 2020-2030, apresentado por António Costa Silva. A preocupação somente com desportos náuticos, eventos e estágios internacionais apontados como estratégicos nesse plano só nos mostra o desrespeito pela formação e o acabar com a base da pirâmide, o que implicará que daqui a uns tempos não haja topo. Quando a própria máquina mercantilizada e mercantilizadora é ignorada, mais facilmente são triturados os seus intervenientes directos. Quando a máquina está de tal maneira bem oleada, não é um grão de areia – nem um penedo – que a irá fazer emperrar!
A pandemia (a tal «de todo o povo») leva-nos a um estado de “saber e não saber, ter uma noção de absoluta veracidade enquanto se dizem mentiras cuidadosamente elaboradas, defender simultaneamente duas opiniões que se anulam reciprocamente, sabendo-as contraditórias e acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moral ao mesmo tempo que se reclama a moral (…).” Mil novecentos e oitenta e quatro. George Orwell. Trinta e seis anos de atraso… em relação ao previsto!"

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