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sábado, 20 de abril de 2024

O homem de coração de pão que sabia quando erguer o nariz


"José Francisco Sasía e Waldemar eram primos mas como irmãos: um jogava a bola, o outro cantava.

José Francisco Sasía e o seu primo direito Waldemar Sasía gostavam de ensaiar juntos músicas que lhes nasciam como lírios entre abrolhos no tempo da sua adolescência descontraída no Departamento de Treinta y Três, um dos dezanove departamentos que compõem a parte norte do Uruguai e cuja capital é, precisamente, a cidade de Treinta y Três. Se Waldemar levava jeito com o violão e com o encaixe das colcheias, José Francisco levava a coisa para a brincadeira. Vendo bem, preferia usar os pés para disputar jogos de futebol com a garotada da vizinhança. Como cresceu à bruta, de tal ordem que parecia ter sido adubado, não tardou a ganhar a alcunha de Pepe el Grande, um apodo mais propriamente de circo do que de bola. A verdade é que El Grande acabou por ter uma carreira bonita como poucas. E Waldemar também: aos 15 anos caiu sobre a proteção de um professor de música chamado Carmelo Rodríguez. Era pobrete mas alegrete. Como lhe faltava dinheiro para adquirir uma guitarra a sério, tratou de construir um instrumente bastante particular, aproveitando uma velha guitarra esburacada para lhe juntar um fundo de lata que servia de caixa de ressonância. O mais fantástico de tudo isso é que conseguia tirar daquele brique-à-braque sons harmoniosos o que deixou cada vez mais fascinado o seu mestre Carmelo que decidiu que valia a pena gastar a sua sabedoria com ele.
Paralelamente, o seu primo José Francisco ia percorrendo um caminho de sucesso que o levou mesmo a representar a seleção uruguaia. Heber Pinto, um jornalista que seguiu de perto o seu crescimento e que escreveu longas e belíssimas crónicas sobre ‘El Grande’, e teve uma fama tremenda como relatador radiofónico, conhecido mais tarde como ‘El relator que televisa con la palabra’, conta o episódio que se passou no final de uma partida entre o Defensor (equipa de Sasía) e o Racing. O árbitro marcou um penalti a favor do Defensor no último minuto do jogo e Pepe avançou decididamente para marcá-lo. Depois do apito, com a sua tranquilidade habitual, Sasía caminhou a passo para a bola e parou em frente dela. Em seguida, sem balanço, disparou um tiro fulminante com o pé esquerdo que fez a bola entrar com uma violência inaudita no canto superior da baliza do Racing. Era uma das suas habilidades preferidas. Rematar com brutalidade sem precisar de correr para a bola. Dir-se-ia até preguiçoso. Mas nenhum preguiçoso jogaria como Pepe jogou no Peñarol e no Nacional, os dois maiores clubes uruguaios, ou no Boca Juniors e no Rosario Central, da Argentina. Além de ter sido 43 vezes selecionado pelo Uruguai para os Mundiais do Chile (1962) e de Inglaterra (1966), ele que terminou a carreira em 1970 para se tornar treinador de um clube com um nome encantador: Tiburones Rojos de Veracruz, no México.
Enquanto o primo José Francisco ia encantando multidões, o sucesso de Waldemar foi ligeiramente mais humilde. A verdade é que nunca esqueceu a fraternidade que uniu os dois garotos do bairro degradado da velha Treinta y Três. E, a melhor forma de o provar, foi dedicar-lhe uma canção:
«El Pepe tenía en la sangre
la bronca del corralón
y la escuela del arroyo
era su libro mejor», começava uma espécie de samba, já que foi sempre muito influenciado pelos tons vindos do Brasil. E continuava:
«Peleador de barrio pobre
sin boca de charlatán
‘Aires puros’ te recuerda
como corazón de pan
José Sasía, amigo fiel
cara de murga, nariz de rey
alma de guapo…».
Todos concordavam que Pepe el Grande tinha feitio de menino e alma da leveza de uma andorinha. Era de uma bondade total e levava-a para dentro de campo onde, no meio das tranquibérnias consecutivas do futebol sul-americano, se erguia do alto da sua autoridade de um metro e oitenta e muitos e nariz grosso como o de Mehmet Özyürek, durante anos considerado o maior nariz da Humanidade, com 8,8 centímetros de comprimento, mas que nunca o atrapalhou («Fui abençoado por Deus!», respondia aos que os que queriam achincalhá-lo com piadas de maus gosto). E assim, o ‘Coração de Pão ‘não só ganhava a admiração de adeptos e adversários pela sua categoria como jogador, como também pela sua bonomia nos momentos de altercações tão frequentes como as mudanças de ideias do Destino.
José Francisco e Waldemar foram como irmãos até à morte. Tinham praticamente a mesma idade. O primeiro nasceu em 1933, o segundo em 1934, mas abriram os portões da planície da eterna saudade com mais de dez anos de diferença:José em 1996 e Waldemar em 2010. Talez tenham voltado a cantar juntos, Mesmo que José Francisco Sasía tivesse o mau hábito de desafinar…"

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