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terça-feira, 12 de abril de 2022

Desporto: os esqueletos no armário


"No passado dia 6 de Abril comemorou-se o Dia Internacional do Desporto ao Serviço do Desenvolvimento e da Paz. Uma data instituída pela ONU e determinada pela primeira edição dos Jogos Olímpicos da era moderna em 1896 e realizados em Atenas.
Uma comemoração mais do que necessária num tempo em que o desporto é, ele próprio, atingido pela guerra. Num tempo em que o desporto é usado como arma de arremesso para combater essa mesma guerra. Cabe-nos, a nós, reflectir sobre a eficácia destas comemorações e sobre as várias e diferentes campanhas de sensibilização que são lançadas utilizando o desporto como meio. Entre nós, e das últimas, recordamo-nos da campanha «Violência Zero», promovida pela Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (lançada a 17 de abril de 2019), assim como da campanha «Start to Talk» desenvolvida pelo IPDJ entre o final de 2018 e o final de 2020 para prevenir e responder ao abuso sexual de crianças e jovens no desporto. Cabe-nos, a nós, reflectir não só sobre a eficácia (resultado) destas comemorações mas também sobre a sua eficiência (processo). Ele é as «virtudes desportivas», ele é os «valores no desporto», ele é «as boas práticas no desporto», ele é a «ética no desporto»… e o que resulta de tudo isto? Já em 1985 Melo de Carvalho (1) nos dizia que “é evidente que estas campanhas não terão qualquer consequência prática, a não ser dar satisfação à «boa consciência» dos dirigentes políticos e calar as críticas mais acérrimas (…)”.
Mas regressemos à paz, à guerra e ao desporto. Num momento em que a FIFA, a UEFA, o COI e inúmeras federações internacionais retiram a Rússia e a Bielorrússia das competições internacionais, num momento em que os ministros do desporto da União Europeia e de outros 11 países - Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Estados Unidos, Islândia, Japão, Liechtenstein, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido e Suíça -, validaram todas as sanções aplicadas a desportistas, clubes ou seleções que representem a Rússia e Bielorrússia, o desporto foi colocado no mapa geostratégico da política internacional deixando de ser «uma guerra por meios pacíficos», excluindo-se a derrota como «morte simbólica» neste substituto do conflito armado entre países e passando a ser instrumento da própria guerra.
Se nos estatutos da FIFA, nos estatutos da UEFA e na Carta Olímpica se vislumbra um suporte jurídico que permita a aplicação destas sanções, não é menos certo que nos mesmos também são plasmados princípios de neutralidade. Mas esta neutralidade cai por terra com a aplicação dessas sanções. É excelente pensarmos a quatro dimensões mas de nada serve se agirmos apenas a três dimensões. O desporto neutro foi uma bandeira agitada ao vento por certos ideais e durante muito tempo mas nunca o foi na realidade. O mote já tinha sido dado há muito e socorremo-nos de novo de Melo de Carvalho quando nos dizia que era “absolutamente necessário liquidar essa velha visão tecnocrática do desporto que afirma que entre os dois (desporto e política) não há qualquer relação, pretendendo fazer daquele uma «ilha» de pureza (considerando que a política é sempre «suja»).” E foi reforçado uns anos mais tarde quando Gustavo Pires (2) falando de Gestão do Desporto nos dizia que o interesse das pessoas por estes processos ficava-se “a dever não só ao seu valor económico como também à sua dimensão política.” E rematava afirmando que neste domínio, “a utilização do desporto como um dos instrumentos da política tem vindo a acentuar-se de uma forma cada vez mais acentuada, desde os anos sessenta.”
Nestes tempos conturbados propalaram-se inúmeros e diferentes ‘clichés’, banalizaram-se conceitos… O desporto é uma ferramenta que fortalece os laços sociais, promove o desenvolvimento sustentável, fomenta a solidariedade e o respeito… O desporto une e reúne, o desporto favorece e incrementa a aproximação e o bom relacionamento entre os povos… O desporto, para além da manutenção da paz, encontra-se imbuído de valores como o ‘fair-play’, a cooperação, a disciplina, a confiança mútua, a superação, o diálogo, a fraternidade… Instaladas num politicamente correcto, estas expressões vulgarizaram-se, revelando-se perigosas como artefactos de uma narrativa única, manipuladora.
Recorreu-se à trégua da guerra no Natal de 1914, na Bélgica, em que soldados alemães e britânicos abandonaram as trincheiras para se defrontarem num jogo de futebol, exemplificando-se assim como o futebol pode interromper uma guerra e gerar momentos de paz. Evocou-se o exemplo do «jogo da morte», entre os ucranianos do Start e os alemães do Flakelf em 1942, e em que, segundo se consta, ao intervalo, no balneário, os jogadores do Start de Kiev foram visitados por um oficial da Gestapo que lhes recomendou perderem o jogo sob pena de perderem a vida – certo é que a equipa ucraniana derrotou os alemães por 5 a 3, que oito jogadores foram detidos pelos nazis, e que um deles foi assassinado após interrogatório dos invasores e outros três foram executados num campo de concentração. Trouxe-se o facto de, em 2018, as duas Coreias competirem sob a mesma bandeira nos J. O. de Inverno (já o tinham feito em Sidney 2000, Atenas 2004 e Turim 2006) em hóquei no gelo…
No entanto ninguém se lembrou das duas partidas entre as selecções de futebol de El Salvador e Honduras, em 1969, e que foram o pontapé inicial para um conflito fora das quatro linhas. Foram quatro dias de batalhas até que a Organização dos Estados Americanos conseguisse negociar uma trégua. No campo desportivo, a guerra foi decidida numa terceira partida, em território neutro, que os salvadorenhos venceram por 3-2. Derrotada saiu a população anónima: entre salvadorenhos e hondurenhos, os números apontam para mais de dois mil mortos. Também se olvidou o encontro de futebol entre o Dínamo de Zagreb e o Estrela Vermelha de Belgrado em 1990 (117 polícias feridos, além de 39 adeptos do Estrela Vermelha e 37 do Dínamo) e que marcou o início dos combates pela independência da Croácia. E por que motivo não se trouxeram estes factos à colação? Porque o desporto também tem esqueletos no armário...
Caiu o pano e, definitivamente, temos de considerar o desporto como uma actividade não-neutral, não apolítica. Em 2004, um Catedrático em Ciências do Desporto, na área de Pedagogia do Desporto – Pedro Sarmento (3) – dizia-nos que o desporto “é um instrumento da política e é fácil constatar como tem sido usado por políticos, ao serviço de ideologias ou de regimes, que se revêem politicamente nos feitos desportivos, servindo estes como orientações individuais e institucionais”. Hoje em dia é o próprio Presidente do COP, José Manuel Constantino («Público», 05.03.2022), a dizer-nos que política e desporto “nunca deixaram de estar misturados. Toda a história do desporto está contaminada por aquilo que é o seu enquadramento político.”
Há demasiadas campanhas de sensibilização contra a violência no desporto, a favor do fair-play no mesmo, sobra a ética no desporto, sobre a prevenção e o combate ao ‘bullying’ no desporto… mas atente-se que a pedagogia é sempre ignorada. E por que motivos? Porque essas campanhas, elas próprias, encontram-se dentro do politicamente correcto, fazem parte do próprio sistema. Actualmente o desporto tem mais a ver com política e com economia do que com educação. Criou-se o mito da formação moral pelo desporto ou da construção do carácter através do mesmo... Pois vivamos com ele e vamos cantando e rindo!
E terminamos com as palavras de Antonino Pereira e de Rui Proença Garcia (4): “Qualquer desvio axiológico é percebido e combatido mais rapidamente no desporto do que em qualquer outra área da vida humana. Tal ocorre porque o desporto é observado como um oásis no deserto axiológico da sociedade. Nesta atividade não há lugar para a neutralidade axiológica. É a lei do tudo-ou-nada. Não há lugar neste agir para o mais ou menos. A ética é um absoluto ou, por outras palavras, um imperativo categórico.” Saibamos interpretá-las!"

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