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domingo, 16 de junho de 2019

Uma história sobre o racismo

"Até que um dia de manhã todos os jogadores apareceram pintados de negro, eram «os matraquilhos mais africanos do mundo»

O dia
1. O racismo na cidade e no desporto. Tantas abordagens. Olhemos para a história de Mia Couto de que tinha prometido falar em tempos. Sim, é sobre matrecos. Sim, é sobre o racismo.
Matrecos: modalidade para futebolistas imóveis dos pés; futebolistas dos pulsos, concentrando habilidades imaginárias no campo mínimo por via de músculos também mínimos que torcem e deslocam bonecos apenas para a esquerda ou para a direita, ligeiramente para a frente ou para trás; poucas possibilidades, portanto. Sem a possibilidade de grandes recuos, avanços ou saltos.
Os bonecos são colocados em linha, unidos por uma barra de ferro que os atravessa ao meio - e, descrevendo desta maneira, quase parece estarmos a falar de filme de terror e não de um jogo divertido.
Sim, é um conto sobre matrecos; o conto de Mia chama-se: O dia em que fuzilaram o guarda-redes da minha equipa.
Um título nada manso.

Um golo que cai
2. É um jogo quase simbólico, mas mesmo assim intenso, excitante. O narrador do conto fala dessa vibração de multidões imaginárias quando a bola de madeira «escorrecaía» no buraco da baliza.
Um verbo novo - «escorrecaía» - que é mesmo necessário: o golo em matraquilhos mistura o golo da modalidade bem conhecida - que ultrapassa a linha na horizontal - e uma pura queda abrupta. É um golo horizontal e vertical: ultrapassa o guarda-redes e cai. E uma bola que cai e desaparece no exacto momento do golo é um dos mistérios que encanta os meninos no jogo de matraquilhos. Uma espécie de magia. Mas há outros mistérios.

A história
3. Na história de Mia é dito que a mesa de matraquilhos «dormia fora do bar, ao dispor do luar que tombava no pátio». No enfanto, os ladrões não a cobiçavam: o seu peso era excessivo para larápios rudimentares. O que é pesado, como todos sabem, só pode ser roubado por via de uma qualquer grande empresa multinacional.
O narrador conta, então, que «nós, sem idade e com as raças todas à mistura, só podíamos frequentar o imaginário relvado no intervalo dos outros». O «nós» era crianças; e os outros eram os militares, os que ocupavam o campo com a sua autoridade e com tudo o resto: a mesa da matraquilhos era nossa só quase às vezes.
Uma disputa não física entre crianças e soldados. De quem é o campo? O campo é nosso (das crianças) «só quase às vezes» - uma bela síntese.
Mas o terrível do conto aparece depois.

A noite
4. Numa noite, algo aconteceu. Na manhã seguinte, um dos jogadores apareceu pintado de preto. As pessoas em volta, claro, chamaram ao novo jogador daquela mesa de matraquilhos: Eusébio.
«Depois», escreve Mia Couto, «apareceram mais três avançados, subitamente transcoloridos. Ainda encontraram piada, anedotaram. Distribuíram mais nomes: Coluna, Vicente, Mataeu». Até que um dia de manhã todos os jogadores apareceram pintados de negro, eram «os matraquilhos mais africanos do mundo». Desde o guarda-redes até ao avançado.
Na história de Mia Couto narra-se que um dos soldados, ao ver aquilo, ficou doido de irritação - e ninguém o foi capaz de segurar. Diante da mesa de matraquilhos, puxou da arma e apontou, diz a criança que narra o conto, para o «guarda-redes da minha equipa».
A descrição é terrível: «o tiro soou e o pequeno boneco esvoou, salpicando estilhaços, mais súbitos que o sangue».
O narrador de Mia termina dizendo: «Ainda hoje aquele tiro continua ressoando em minha vida, junto com esse outro grito que, por engano de um relâmpago, me pareceu sair do bonequinho alvejado».
Este terrível grito imaginário do guarda-redes de matrecos fuzilado: um grito simbólico, mas que ainda ressoa - o grito da vítima violenta do racismo."

Gonçalo M. Tavares, in A Bola

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