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terça-feira, 19 de março de 2019

Camisolas brancas manchadas a vermelho vivo


"A surpreendente goleada do Ajax ao Real Madrid, para a Liga dos Campeões, faz-nos recordar que foi o Benfica a primeira equipa europeia a aplicar aos merengues um resultado muito doloroso.

Desde 1913 que Benfica e Real Madrid ganharam o hábito de se defrontar regularmente, mais em jogos particulares, como está bem de ver, já que oficialmente foi raro cruzaram-se nas taças da Europa. Desde 1913 que os resultados não deixavam de ser surpreendentes:
1913, Lisboa, Benfica 7 - 0 Real Madrid (particular)
1913, Madrid, Real Madrid 2 - 1 Benfica (particular)
1915, Madrid, Real Madrid 0 - 5 Benfica (particular)
1919, Madrid, Real Madrid 4 - 1 Benfica (particular)
1919, Madrid, Real Madrid 1 - 5 Benfica (particular)
1922, Madrid, Real Madrid 4 - 1 Benfica (particular)
1948, Lisboa, Benfica 1 - 1 Real Madrid (particular)
1948, Madrid, Real Madrid 5 - 0 Benfica (particular)
1954, Lisboa, Benfica 0 - 2 Real Madrid (particular)
1957, Madrid, Real Madrid 1 - 0 Benfica (final da Taça Latina)
1962, Amesterdão, Benfica 5 - 3 Real Madrid (final da Taça dos Campeões)
1964, Cádiz, Real Madrid 1 - 2 Benfica (Troféu Ramón Carranza)
Não se pode dizer que os espectadores tivessem razão de queixa.
Quando se ficou a saber que, nesse ano de 1965, Benfica e Real Madrid se iriam encontrar nos quartos-de-final da Taça dos Campeões Europeus, apostou-se na vingança dos espanhóis Mas se o Benfica era praticamente o mesmo da final de Amesterdão, o Real Madrid já era outro: mais jovem, sem Di Stéfano, com Puskas aos bocadinhos, passando mais tempo no banco dos suplentes do que no relvado.
Muñoz, treinador madrileno, confiou no veterano húngaro para a 1.ª mão, no Estádio da Luz.
Dia 24 de Fevereiro de 1965: Eusébio estava à beira de completar 23 anos e um mês.
Dia 24 de Fevereiro de 1965: Eusébio diz muitas vezes que nessa data fez a maior exibição da sua carreira.
Dia 24 de Fevereiro de 1965: o Benfica tratou o Real Madrid com a mesma soberba que dedicara aos luxemburgueses do Aris Bonnevoie e aos Suíços do La Chaux de Fonds, nas duas eliminatórias anteriores - a todos aplicou 'chapa 5'.
Em Lisboa, no dia 24 de Fevereiro de 1965, o grande Real Madrid, o fabuloso Real Madrid, monstro dos monstros do futebol da velha Europa, foi reduzido a farrapos, a uma massa inerte de jogadores incrédulos: nunca tal sucedera em nove anos de existência da Taça dos Campeões. Por nove vezes estivera o Real Madrid na prova: por sete vezes chegara à final; por cinco vezes a vencera. Em Belgrado, em 1956, tinha sido derrotado por 0-3. Recuperaria em Madrid: 4-0. Em Amesterdão tinha sofrido cinco golos do Benfica: mas Puskas marcara três. Desta vez contra os golos de Eusébio (2), José Augusto, Simões e Coluna, só Amâncio conseguira responder por uma vez.
'Eusébio es um fenómeno!', grita Martín Navas, da Rádio Nacional de España aos microfones. O grito ouve-se por toda a Península Ibérica, se calhar por todo o continente.



Bastaram 9 minutos
Aos 9 minutos já o Benfica tinha feito um golo, por José Augusto, de cabeça.
Três minutos depois, Eusébio vai ao seu próprio meio campo receber um passe de Raul. Parecia que esse seu recuo, atrás da linha que dividia o relvado, tinha como intenção tomar balanço, ganhar metros por onde pudesse lançar-se, imparável, na sua passada negra de pantera.
Eusébio solta-se. Leva consigo a bola, colada aos pés, amarrada aos pés com o fio de ouro fino do seu talento. Eusébio está solto como as chitas nas infinitas savanas do Tsavo. Pará-lo, segurá-lo, travá-lo é como interromper as margens de um rio quando as cheias avançam, inquietas e inexoráveis.
Eusébio corre. Que digo eu?! Não corre:voa por entre adversários e companheiros de equipa. Os seus pés têm as asas do deus Mercúrio, o seu peito alarga-se, e ele respira em rabanadas de vento de dobrar árvores, de arrancar telhados, de devastar cidades inteiras.
Eusébio sopra a mais de trezentos quilómetros por hora.
Há um centésimo de segundo de silêncio.
70000 pessoas em silêncio profundo.
No momento em que pressentimos que a obra de arte está para nascer, respeitamos o silêncio absoluto da criação.
Aposto que houve um centésimo de segundo de silêncio ante de Deus criar o mundo!
A seguir houve o grito uníssomo: golo!
Eusébio estava ainda longe da baliza de Betancort, mas pouco se importou: rematou na mesma.
A bola saiu do seu pé direito a uma velocidade de para aí trezentos mil quilómetros por segundo.
Entrou junto a um poste: parecia que sabia exactamente em que lugar deveria entrar.
Treze minutos depois voltou a ser fenómeno.
Péridis deu para José Augusto; José Augusto correu pela direita, como era seu hábito, e centrou, como também era seu hábito; Torres tocou a bola de cabeça para trás, para a entrada da área.
Até aqui tudo normal.
O fenómeno dá-se agora: a bola vem caindo, de mansinho, na frente de Eusébio, e Eusébio não a quer. Com o peito do pé, com uma violência inaudita, nega-lhe o carinho da sua chuteira.
Trezentos mil quilómetros por segundo: a velocidade da luz.
Nenhum guarda-redes é capz de contrariar a velocidade da luz.
Giorgio Avversari, enviado-especial do Corrier dello Sport: 'Estou siderado com aquilo a que acabei de assistir. A actuação do Benfica superou em muito o que eu esperava, e Eusébio é um dos melhores jogadores que vi em toda a minha vida. Oxalá o Inter de Milão não tenha a desdita de jogar com o Benfica nas meias-finais'.
Não jogou. Jogou na final, em S. Siro. Mais conveniente era impossível."

Afonso de Melo, in O Benfica

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