"Um estudo realizado em 2008 por Mark W. Denny (1), da Stanford University, usando três modelos matemáticos, estimava os tempos limites do ser humano masculino e feminino, para as várias distâncias das provas de atletismo (excepto para os 3.000, 5.000 e 10.000 metros femininos).
É o único estudo científico predictivo que conhecemos (podendo no entanto existir outros) em que, recorrendo a várias variáveis, limites de velocidades absolutos são definíveis e dos quais os actuais recordes se aproximam dos máximos previstos.
Nenhum dos tempos estimados foi até ao momento alcançado… excepto o da maratona. No mesmo apresentava-se a possibilidade de se estabelecer como recorde humano masculino para a maratona o tempo de 2h 00m 47s. Sensivelmente há um ano (12.10.2019) Eliud Kipchoge estabeleceu um máximo, em Viena, embora não homologado oficialmente, de um tempo para a maratona inferior a duas horas: 1h 59m 40s.
Para além do facto de Kipchoge ser um atleta excepcional – provavelmente seria o único, actualmente, a conseguir esse tempo – este tempo foi possível devido a várias circunstâncias também excepcionais: correu atrás de um carro que para além de funcionar como corta-vento marcava o tempo ideal no piso através de laser (pacemaker); teve a ajuda de mais de 4 dezenas de lebres por turnos; o percurso foi feito em quatro vezes num circuito plano de cerca de um pouco mais de 9Km com um desnível máximo de 2,4 metros; a data do evento foi marcada por meteorologistas que determinaram o momento ideal da prova para garantir que nesse dia o vento iria estar a menos de 14 quilómetros por horas, que a temperatura estaria entre os 10 e 12 graus e que a humidade estaria a menos de 70%; por último, a utilização de sapatilhas estudadas e construídas de propósito para o efeito utilizando placas de carbono por uma marca desportiva que patrocinou a prova.
Este tempo não vem colocar em causa o estudo de Denny dado que o mesmo foi obtido em condições ideais e não com as condições normais de uma competição – sem se retirar o devido valor a Kipchoge, antes pelo contrário. As experiências de “laboratório” mostram até onde o ser humano pode chegar se optimizadas todas as variáveis enquanto a realidade competitiva é muito diferente e provavelmente até com mais variáveis a terem de ser consideradas. Exactamente como quando adquirimos um automóvel novo e nas suas especificações se expressa que consome 4,5 litros aos 100 quilómetros… e nós nunca o conseguimos colocar a gastar esses 4,5 litros nessa distância porque é testado em condições ideais e nós conduzimo-lo em situações normais.
Mais recentemente, em Valência, foi organizado um evento para se baterem os recordes mundiais de 5.000 metros femininos e 10.000 metros masculinos. Ambos os objectivos foram alcançados. Na primeira prova Letesenbet Gidey bateu o recorde mundial com 14m 06,65m e na segunda Joshua Cheptegei faz cair o anterior recorde (pertença de Kenenisa Bekele com 26m 17,53s desde 2005) com 26m 11,00s – marca que se aproxima dos 25m 03,40s estimados por Denny.
Neste último, com 6 atletas, utilizadas também duas lebres na prova feminina (apesar dos últimos 2.000 metros um ‘solo’ de eleição de Gidey) e seis lebres na prova masculina, a qual contava com oito atletas. Ainda em comum o uso da ‘wavelight technology’, as luzes junto à corda, azuis à frente e logo a seguir verdes, que marcavam o ritmo ideal da corrida para se bater o recorde do mundo.
O que poderemos inferir da realização destes dois eventos?
1º - A contínua batalha do atleta a tentar chegar sempre “mais rápido, mais alto, mais forte”.
2º - A necessidade de se realizarem eventos próprios – o INEOS 1:59 Challenge e o NN Valencia World Record Day – com a finalidade específica de se baterem recordes e com condições optimizadas.
3º - Para além da utilização da “tecnologia humana” (as lebres) acrescentou-se a utilização da última “tecnologia tecnológica” (a motivação para acompanhar o sinal luminoso);
4º - O benefício para as grandes marcas através da publicidade.
Os recordes ao alimentarem-nos o ‘ego’ com a consequente identificação do comum dos humanos com os seus heróis tornam-se assim uma panaceia difundida pelos ‘mass media’. Estes precisam dos mesmos para aumentarem as audiências ou para venderem mais, tal como as grandes marcas e grandes patrocinadores. Sem visibilidade, a quem interessariam os recordes?
Repare-se agora em dois recordes que fazem actualmente as notícias, um já atingido outro perseguido. João Almeida, que neste momento se encontra à frente no Giro em Itália, já bateu o recorde de Joaquim Agostinho o qual liderou durante cinco dias a Vuelta, em 1976. Cristiano Ronaldo, com 101 golos marcados pela selecção nacional, encontra-se a oito golos do iraniano Ali Daei. Em breve lá chegará! No entanto Cristiano Ronaldo já não irá a tempo de bater o recorde de média de golos por partida de Ali Daei. Este atingiu uma média de 0,73 (109 golos em 149 jogos) enquanto aquele possui uma média de 0,61 (101 golos em 165 jogos).
O recorde é necessário para fomentar o espectáculo. O ‘Homo spectator’ necessita de alimento. Está criado o círculo vicioso! Escolham-se as variáveis, crie-se o recorde! Mas interroguemo-nos, tal como nos interrogava Mondzain (2): “Quem é este homem espectador que está em vias de se transformar numa partícula elementar de uma massa designada «público», num certo ambiente tecnológico, industrial e financeiro?”"
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