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sexta-feira, 5 de junho de 2020

O martelo de Nietzsche V

"1. A natureza racional dos Homens permite-lhes desenvolver acções voluntárias que decorrem do livre arbítrio o que liberta a humanidade dos seus próprios instintos mais egoístas. Então, num hino à lei do menor esforço, a lógica é o Estado tomar conta da Sociedade, e, assim, monopolizar o altruísmo próprio da condição humana. Felizmente, os Homens também empreendem ações que, apesar de determinadas pelo livre arbítrio, parecem involuntárias uma vez que é o altruísmo próprio do instinto moral que se sobrepõe ao instinto natural. Então, a lógica é a Sociedade tomar conta do Estado, e, assim, colocar o altruísmo ao serviço do desenvolvimento humano.
2. Diz o Programa de Recuperação Económica do PSD apresentado por Rui Rio no passado dia 3 do corrente mês que o Partido quer um Estado que proteja e sirva os cidadãos. O problema é que, em matéria de desporto, foi precisamente a partir do XV governo Constitucional (PSD) que se desencadeou um “golpe palaciano” que institucionalizou um desporto clientelar subjugado por um Estado omnipresente que, depois, foi superiormente aproveitado pelos governos do PS. Hoje, se, por um lado, os resultados nos Jogos Olímpicos são miseráveis apesar de não faltar dinheiro, por outro lado, a prática desportiva dos portugueses é vergonhosamente a pior da União Europeia apesar de não lhes faltar vontade para praticar desporto.
3. Os políticos, dos mais variados quadrantes partidários, na sua infantilidade desportiva, têm um jeito especial para transformarem um assunto natural, espontâneo e gracioso como é o desporto num objecto partidário, burocrático, carregado de normas e sem graça nenhuma. Os piores acabam orgulhosamente na televisão a berrar futebol ou, exclusivamente preocupados, com o “dress code” obrigatório das olímpicas festarolas.
4. Perguntam-me quem é o homem do “dress code”. Toda a gente sabe e eu também, mas não digo. A mim só me interessa a metáfora. A gestão em geral e a do desporto em particular é, em muitas circunstâncias, realizada através da força das metáforas. E até há dezenas de metáforas desportivas que se aplicam não só à gestão como às mais variadas áreas do conhecimento. Assim, de imediato, lembro-me desta: Dirigentes medíocres não suportam atletas de excelência. Atletas de excelência não suportam dirigentes medíocres. A excelência nunca se deu bem com a mediocridade do espírito do “dress code”.
5. É na ludicidade pedagógica de cada jogo infantil onde se começa a construir a base ética de sustentação da educação desportiva de um país promotora de uma futura cultura competitiva justa, nobre e leal. Da prática desportiva para a vida ao alto rendimento é no jogo infantil onde tudo deve começar. E continuar na Disciplina de Educação Física pelo ensino do desporto e no Desporto Escolar através de amplos quadros competitivos. Depois, do lazer ao alto rendimento, cabe aos clubes proporcionar a prática desportiva aos portugueses.
6. Infelizmente, em Portugal o desporto, salvo algumas excepções, está cativo de um certo dirigismo desportivo que jurassicamente se afirma em algumas Federações, repetindo de ano em ano mais do mesmo quando não cada vez pior. Nem que para isso se tenha de servir de Testas de Ferro. A perversidade desta situação só muda se mudar a filosofia de financiamento estatal do mundo desporto.
7. É tempo de começar a mudar a lógica do financiamento estatal ao desporto. O atual modelo evoluiu mais em função das suas perversidades do que do desenvolvimento da prática desportiva que era suposto promover. Os dinheiros devem entrar no desporto por onde acontecem as actividades que é nos clubes e só deve chegar às Federações se estas justificarem aquilo que produzem.
8. Para além da estuporada orgânica do desporto nacional em que toda a gente manda mas nunca ninguém é responsável por nada, um dos seus maiores problemas é as Federações terem transformado o seu processo em produto. Quer dizer, num grande número de federações, o produto é o processo. Transformaram-se em máquinas burocráticas absolutamente inúteis em termos de desenvolvimento do desporto nacional ao ponto de, sem qualquer pudor e numa ode à incompetência, naturalizarem de aviário atletas estrangeiros (autênticos mercenários) a fim de representarem Portugal nos eventos desportivos internacionais. Claro que à custa do dinheiro dos papalvos, quer dizer, dos contribuintes. 
9. Entretanto, o Estado, para além de um pornográfico controlo político-partidário do desporto, tem vindo a perder cada vez mais o interesse por um verdadeiro desenvolvimento da prática desportiva dos portugueses em benefício do aumento exponencial dos consumidores acéfalos dos espectáculos desportivos que expressam as sus mais primárias frustrações a atacar academias e autocarros ou a transformar as relações humanas em autênticos campos de batalha que acontecem regularmente na comunicação social. Nada que há muito não tenha sido previsto. George Orwell num texto intitulado “The Sporting Spirit” publicado na revista Tribune de dezembro de 1945, para além de classificar os eventos desportivos como “orgias de ódio” explicava que o verdadeiro desporto “não tem nada a ver com fair play. Está ligado ao ódio, ao ciúme, à vaidade, ao desrespeito a todas as regras e ao prazer sádico de testemunhar a violência. Em outras palavras, é guerra menos o tiroteio”. Por cá, de acordo com Orwell, o desporto está transformado numa autêntica guerra civil.
10. A competitividade parece estar a surgir como o elixir que vai salvar o País dos estragos provocados pelo Codvid-19. Os políticos, os gestores, os gurus da rádio, da televisão e da net e quejandos andam com a boca cheia de competitividade. Tornar Portugal um dos países mais competitivos no quadro da zona Euro parece ser o novo karma político. Pergunta-se: Pode, alguma vez, um país ser competitivo se não tiver uma cultura competitiva? Pode, alguma vez, um país ter uma cultura competitiva se não tiver uma verdadeira educação desportiva?"

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