"Já lá vão cinco anos sobre o morte de Eusébio. Alguém um dia perguntou: porque passam os anos tão depressa e as horas tão devagar? Não sei onde ele se encontra. Mas escrevo-lhe. Como se fosse uma profunda necessidade.
Lisboa, tantos do tal. Há cinco anos já que Eusébio partiu para o Grande Vazio. Ou para o Grande Desconhecido, se quiserem. Não conheço quem de lá tenha voltado para descrever essa planície infinita de mágoas e de saudade.
Onde estás, amigo? Em que lugar concreto desse céu para o qual olho na convicção de te ver correr por entre as galáxias, fazendo dos astros fingidos meros holofotes desse teu brilho negro, incandesceste e inconfundível?
Fazes-me falta.
Fazes-nos falta.
Eras uma espécie de segurança só por estares lá. A segurança de, um dia, qualquer garoto de rua, descalço sobre a terra batida, poder ignorar o grito da mãe que o chama da janela da infância, para ficar a marcar golos atrás de golos nessa sua vocação de ser menino para sempre.
Por isso estavas, mesmo não estando. Estavas na recordarão inesquecível de um traço, de um gesto, de um salto vertical em direcção ao céu que será a intuição de asas nos pés desafiando a lei da gravidade.
Para ti nunca houve leis. Como não havia nem tempo nem espaço.
O tempo esse, começámos a senti-lo no dia em que resolveste, talvez por cansaço, talvez por tédio ou lassidão, sair pela porta da frente da vida rodeado por uma cidade inteira que, à chuva, atirou para as ruas os seus diminutos pecadores que quiseram, por um segundo que fosse, tocar as tábuas do teu caixão.
Garcia Lorca falava dos sons negros.
Poucos negros terão sido tão divinos como Eusébio.
Sons negros que queimavam as gargantas como uma água feita de vidro.
Quantas gargantas queimaste quando, numa passada, deixavas de ser homem para te tornares fera? E os olhos abriram-se para que todos pudessem acreditar no inacreditável.
Pois... onde andas tu?
Desafias os anjos da tua rua do paraíso para jogos de bola com balizas de nuvens?
Os deuses, maiores ou menores, mais inquietos ou mais melancólicos, deixam-se espantar pela maneira como corres driblando a lógica relutante dos planetas? E os filhos dos deuses pedem-te para apareceres a seu lado nas fotografias dependuradas nas paredes azuis-pacífico do firmamento?
Gostava de me sentar a teu lado e ouvir-te falar do que se passou entretanto nesse teu outro lado da vida.
Falarias devagar, como costumavas fazer, da maneira como um Ser acima de todos os outros te foi receber aos portões escancarados da Eternidade. E de como te fez uma vénia humilde, baixando a cabeça de cabelos longos e brancos, só para observar com atenção a fantasia melodiosa que se desprendia dos teus pés abençoados. E de como, logo na primeira noite, de arranjaram uma mesa sobre a qual pudesses pousar o teu corpo já vazio ou ainda por encher, e da pressa com que todas as entidades extintas e por inventar se envolviam numa luta para se sentar à tua direita.
O silêncio de um abraço.
Sei (sabemos) que não voltas. Tens, agora, mais do que fazer.
És continuamente assoberbado pelos favores que os duendes e os arcanjos, as musas e as necromantes te pedem a cada minuto. Aí, como aqui, exigem-te que carregues o mundo sobre os ombros, Sísifo de pele escura, igual à que me recobre o coração e que me mostrou que talvez um dia pudéssemos ser irmãos como naquele silêncio em que ficámos, certa noite, lado a lado na janela de um avião espreitando o brilho eléctrico de uma tempestade cada vez mais próxima. E esse medo que sentias era também a forma de te tornares o mais parecido possível com os banais humanos.
Voaste para longe, tu que só gostavas de voar sobre a segurança inimitável da relva.
Quantas foram as pequenas verdades que transformaste em sonhos? Quantas foram as minúsculas regras científicas que despedaçaste à força de remates trovejantes?
Ora, e por que não fechaste simplesmente a porta quando viste que era a morte que a ela batia? Sentiste necessidade da sua macabra companhia?
Queria enviar-te esta carta, mas não há quem saiba dizer-me em que órbita vives agora. Avisaram-me apenas que teria de seguir pelo trilho dos sons negros de Lorca, dobrar as esquinas das ondas do mar da nostalgia, continuar por um caminho estreito, apertado por entre entre árvores de gelo fino, e não olhar nunca, mas nunca, para os sóis que queimam as íris de todas as cores e as reduzem às cinzas da cegueira da estupidez. Se no final dessa jornada entrar por um lago de erva verde, sem longitudes nem latitudes, apenas com um crucifixo em cada ponta a imitarem balizas de uma religião que nada me diz, é provável que te encontre.
Mas não esperes por mim. Agora, depois de todas as horas que estive à tua espera, incapaz como eras de ser pontual, é a minha vez de chegar tarde.
Levo-te notícias do teu país: o país das fadas.
Levo-te qualquer coisa encarnada porque será sempre para ti um consolo.
Aposto que te encontrei na companhia de uma bola.
Vendo bem, nem saberias viver sem ela.
De tudo o mais que poderia dizer-te, escolho o silêncio de um abraço."
Afonso de Melo, in O Benfica
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