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segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Casper, o fantasma amigo do Benfica de um treinador com dúvidas


"Com um ‘momento Pepa’, o dinamarquês Tengstedt, que tem quase nove meses de Benfica, fez um golo ao primeiro toque que deu no seu primeiro jogo no Estádio da Luz para desbloquear a vitória (2-0) contra o Estrela. Os encarnados remataram muito, mas as oportunidades flagrantes surgiram, sobretudo, antes do intervalo. Estreando Samuel Soares a titular na baliza, Roger Schmidt deixou sinais contraditórios a partir do banco, de onde David Neres demorou a sair

Nem há um ano, o Samuel entroncado pelos ombros largos e cheios que lhe dão ar de quem vestiu uma camada de armadora por baixo da camisola, estava na cidade da Trofa, um quê aventurado fora da sua área, sem adversários a importuná-lo por perto. Um relvado do Trofense tem 105 de comprimento e Samuel olhou para lá longe, onde estava a outra baliza, vendo naturalmente o respetivo guardião fora dela, mas não fora dele, porque estava a olhar para Samuel sem realmente ver o que a cabeça do guarda-redes de 20 anos matutava fazer.
Repetir o nome de Samuel é propositado pelo que o português ousou tentar: puxou a alavanca atrás, pontapeou a bola para fora da órbita do ecrã de TV e a força foi tal que ao reaparecer com a gravidade estava já prestes a entrar na baliza do Trofense. Não se aninhou nas redes diretamente, precisou de um inglório ricochete no corpo do guardião contrário que roubou o golo a Samuel, de apelido Marques, “com que então o Samuel Marques da equipa B marcou um golo de baliza a baliza”, ter-se-ão surpreendido vários benfiquistas com o guarda-redes que nem há um ano chutou o tal brilharete e faz 84 dias que Roger Schmidt o chamou a um minuto do fim do campeonato para entrar em campo.
O alemão fez do miúdo campeão na Luz onde o devolveu, sem alaridos, à baliza, mas servindo-lhe uma tarte de tempo completa. Ao reconhecimento público do treinador de que Vlachodimos não esteve nos seus dias, na derrota do Bessa, deixando-o fora sequer do banco de suplentes onde estava o ucraniano Trubin, contratado de fresco, seguiu-se a titularidade dada a Samuel num jogo que se veio a saber tranquilo, pacato e quase inofensivo para os seus lados. O seu corpanzil viu-se a sumir da área, correndo até ao equador do meio-campo do Benfica para cortar uma tentativa do Estrela da Amadora em lançar um jogador na profundidade - e ali esteve o seu trunfo.
Descomplexado ao sair dos postes e sem encravar ao correr retângulo fora para controlar a profundidade nas costas de uma linha defensiva se planta subida, Samuel Soares despachou essa bola com o à-vontade com que agarrou outra, cruzada para a sua pequena área. Assentado o Benfica na partida após uns 10 minutos iniciais de peito feito do Estrela, a circular a bola entre o trio de centrais para atrair os anfitriões, chamá-los à pressão e tentar levar a jogada ao repentismo de Ronaldo Tavares, o miúdo Samuel assistiu, à distância, ao lento desenrolar de uma tendência.
Lá nos confins opostos do relvado, a improvisação de Aursnes a lateral esquerdo (com Ristic no banco) com João Mário à sua frente condenou o Benfica a mastigar as jogadas por esse lado. Ambos médios de toque, pausa e bola no pé forte, o português e o norueguês chamavam Kökçü para construir na meia esquerda, sem acelerações mas com triangulações. Confiando na virtude da paciência, a equipa esperava para que a pressão do Estrela ali afunilasse e alguém tivesse a bola de frente para a baliza de modo se dar o tiro de largada a diagonais área dentro, vindas do flanco oposto. O turco rasgou uma encomenda área em Bah, o norueguês curvou outra carta entregue a Di María, ambos desaproveitariam.
Pela relva, com passes rasteiros que massacraram as costas dos médios do Estrela, desnorteados na caça às esperas de Rafa no lado cego dos adversários e do argentino que lá ia espreitando, Kökçü disponibilizou uma bola de golo ao estreante Arthur Cabral, intenso a pressionar e com algodão suave a morar-lhe nos pés embora ainda não com pontaria no esquerdo. Com revienga das suas - finta de corpo, baixo o ombro para fora e engana para dentro -, Di María fez Bruno Brígido voar nos antípodas de Samuel Soares, o espetador de luvas.
O delgado argentino, com mesma mínima musculatura agarrada ao esqueleto de quando saiu do Benfica em jovem adulto, tentaria outra vez, pouco para lá da hora de jogo havia quando um passe atabalhoadamente cortado lhe deixou a bola a jeito de mais uma banana em forma de remate. Bruno Brígido reforçou a sua candidatura a parada do jogo. Antes, Samuel já se arreliara um pouco. Um contra-ataque do Estrela pela direita, onde a equipa insistia em pedir velocidade a Ronald Pereira para massacrar o quintal de trás de Aursnes, fê-lo cruzar contra o peito de Florentino, ou teria sido o braço, a dúvida terá fisgado o árbitro, que foi ao VAR confirmar que nada de ilegal houve.
Puxa-se o momento de arbitragem resolvido num não-penálti para se mencionar o guardião do golo de área a área que nem ficou com esse golo no currículo porque, de outra forma, a novidade de Samuel Soares não visitaria estas linhas - usaria as luvas só para agarrar um par de cruzamentos inofensivos e um remate rasteiro e frouxo. Mas, entre as coisas novas, o guarda-redes terminaria como a mais certa, a única isenta de espinhas. As restantes não tanta, sem que isso seja por culpa própria.
O Benfica ganharia o jogo, mas, na segunda parte, um Estrela que encostou os médios à linha defensiva para encurtarem o bloco e fecharam os espaços entre linhas, previsivelmente atuando no problema que lá tivera antes do descanso, teve de Roger Schmidt a resposta de tirar João Neves para ter Florentino. Quiçá preocupado em ter os tentáculos de reação à perda do seu ‘6’ mais ‘6’ do plantel, o treinador retirou à equipa as diagonais curtas e passe certeiro de João Neves, apostando na dependência inevitável em Kökçü para fazer chegar passes aos corpos que se mexiam à frente da linha da bola. Durante muito tempo, só ele e Di María ameaçaram de fora da área. Até aos 70 minutos, parecia ser a única maneira possível.
Depois, um certo ar ensonado teve ordem de soltura.
Os olhos semicerrados de David Neres constratam com as janelas que o brasileiro escancarou no jogo ofensivo do Benfica, ainda mais tendo a versão de lateral, do seu lado, que Aursnes oferece. Ficando o norueguês refém de receções para dentro, à procura do seu pé direito, sem procurar a linha, é estranha a não convivência de ambos desde o início para haver quem peça passes na largura e de lá acelere o jogo. Neres trouxe variabilidade ao lado esquerdo do ataque, cortou no previsível e o seu pé esquerdo já dera uma chance a Arthur Cabral quando a ginga do seu corpo curvado enganou um adversário para furar a área, cruzar rasteiro e uma espécie de reminiscência acontecer.
Como Pepa há tantos anos, desencantou um golo (79’) na sua estreia com os primeiros toques na bola, Casper Tengstedt atacou a frente do marcador para desviar a bola de David Neres com o seu toque de estreia no jogo e no Estádio da Luz. Loiro e quase transparente de pele, o fantasma dinamarquês concretizou a ameaça do brasileiro e deixou toques simples e certos no campo onde Schmidt preferiu ter um avançado chegado há uma semana ao invés dele, comprado em janeiro. O faro de área do dinamarquês e a agitação de Neres nos constantes 1vs1 que força relaxaram o Benfica, que depois desfrutou da qualidade per capita da equipa.
O golo em formato descarado de Rafa, nos descontos (90’+3), servido pelo brasileiro cheio de ideias e levando a bola quase contra o guarda-redes, na pequena área, já surgiu com a equipa a navegar num flow de técnica, com pequenos passes, toques e tabelas entre jogadores relaxados na sintonia por fim alcançada. Mas, ao certo, essa sinfonia chegou com dúvidas nos bolsos.
E as interrogações ficam: se Roger Schmidt valoriza o polvo que é Florentino na pressão e reação à perda, não o tem de início para libertar Kökçü num jogo que seria feito contra um bloco baixo? Dando sinais em não confiar em Ristic, se improvisa um Aursnes a lateral que não ataca a linha, nem procura a largura ou arrisca no drible, porquê retardar no banco quem oferece o oposto? Se Di María é um vagabundo que espreita sem cerimónias em zonas centrais, haverá receio em coincidi-lo com David Neres em campo? E ter o gerador irrequieto de João Neves da dupla de médios dá imprevisibilidade à construção de jogadas do Benfica, ou Kökçü melhora se o peso estiver todo nele?
Parece que o treinador alemão ainda é amigo destas dúvidas."

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