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terça-feira, 18 de junho de 2019

Predadores(as) sexuais (I)

"Aos 17 anos, recentemente, Noa Pothoven morreu em sua casa em Arnhem, depois de anos a lutar contra a depressão, a anorexia e o stress pós-traumático. Transtornos provocados por violações de que foi vítima em criança. Apesar de solicitada, a eutanásia não foi autorizada.
Morreu, com acesso a cuidados paliativos, depois de deixar de se alimentar e com a anuência tanto de médicos como dos seus pais em não lhe ministrarem alimentos por via artificial.
Segundo a comunicação social, a jovem publicou o livro «Winnen of leren» (que ora é apresentado como «Winning or losing» ora como «Winning or learning») em Novembro de 2018, onde relatou como “por vergonha e medo” escondeu durante anos os abusos que sofreu. Nas suas próprias palavras o seu objectivo era tornar público aquilo por que passou e tentar quebrar o tabu em torno destas questões e dar apoio a jovens que passavam por situações semelhantes.
Uma morte que parece ter sido consciente e bem ponderada e que, sem estarmos na posse de todos os dados, nos parece enquadrada num suicídio de honra, o que nos aproxima da noção japonesa de “seppuku”, dizendo-nos Maurice Pinguet (1) que “é bom e bonito aprender a vencer, mas cedo ou tarde, em qualquer vida, por mais triunfante que o imaginemos, vem o último momento: é preciso saber então ser vencido.”
Catherine Moyon de Baecque, abusada sexualmente pelos seus colegas masculinos da equipa de França durante um estágio organizado pela Federação Francesa de Atletismo em 1991, também resolveu colocar em livro aquilo por que passou (2). Catherine relata no mesmo aquilo que sofreu, mas não só: mostra como os responsáveis colocaram em primeiro lugar o interesse das instituições, pois em vez de ajudarem a vítima tentaram silenciá-la.
Uma vintena de antigas alunas do treinador Régis de Camaret acusaram-no de violação. Entre elas a antiga n°2 francesa, Isabelle Demongeot, que conta a sua história no livro “Service volé” (3). Nove anos de abusos sexuais…
Ao contrário de Noa, Catherine, lançadora de martelo, e Isabelle, tenista, não recorreram ao suicídio. Eventualmente, a prática do desporto poderá ter tido aqui alguma influência… Ao ser inculcado ao praticante desportivo a ideia de esforço, de sacrifício, a fim de se superar a si mesmo ele vai construindo o seu próprio caminho… vai-se formando. A procura incessante da excelência, o culto do corpo e da “performance” e, a superação de si próprio, a tentativa de ultrapassar os limites são motivados pela crença de que ser um “verdadeiro atleta” significa assumir riscos, fazer sacrifícios e jogar o preço de ser tudo o que se pretende e poderá ser.
Habituados a comportamentos de violência física no desporto, de violência verbal, de violência psicológica e de violência gestual, normalmente descura-se a violência sexual no mesmo. Ignora-se ou procura-se mesmo esconder…
Em 2009 realizou-se em França o “Étude des violences sexuelles dans le sport en France : contextes de survenue et incidences psychologiques” (4) o qual na altura mostrou muito do que não chega ao público nem faz notícia… e que vale a pena consultar apesar dos seus já 10 anos!
Em 2012, a campeã americana de judo, Kayla Harrison, explicava ao New York Times (5), precisamente antes dos J. O. de Londres, o que não era um segredo: “eu fui violada pelo meu primeiro treinador. E isso é realmente a coisa mais difícil que eu tive que superar.”
O poder e a dominação masculina, tanto de pares como de treinadores e até de dirigentes serão as principais causas destes comportamentos de barbárie (veja-se o artigo de Aline Flor (6) intitulado “Reagiu ao assédio sexual e foi repreendida pela chefia. «Isto é um mundo de homens»”). São casos de cultura, de educação, de respeito pelo ser humano, já que “não é a fatalidade hereditária que determina que os homens dominem as mulheres”, tal como nos diz Germano da Fonseca Sacarrão (7). Mas que não se pense que a violência sexual funciona só num sentido… ou que o desporto é só uma escola de valores ou de virtudes…
O denominado «el mayor caso de pederastia de España» (8) eclodiu precisamente no seio de uma modalidade que se apresenta como formadora do carácter do indivíduo e detentora de inúmeros valores: o karate. Torres Baena, ex-campeão de Espanha e presidente da «Federación Gran Canaria de Kárate» foi acusado de abusos a menores de 9 a 17 anos que se prologaram durante mais de 20 anos num julgamento em que depuseram mais de 100 pessoas, 61 delas como vítimas. A 15 de Março de 2013 a «Audiencia de Las Palmas» torna pública a sua sentença: 302 anos de prisão para Fernando Torres Baena por se comportar como um predador sexual com os seus alunos, 148 anos para María José González (companheira do anterior e também treinadora) e 126 anos para Ivonne González (outra treinadora de karate).
Será de admirar que exista violência sexual numa actividade em que um atirador tinha um botão instalado no punho do seu florete para fazer acender a luz do marcador quando accionado (Boris Onischenko nos J. O. de Montreal em 1976), em que um futebolista no último jogo da sua carreira pela selecção do seu país agrediu um adversário com uma cabeçada (Zidane na final do Mundial de 2006), em que o ginasta mais medalhado de sempre afirmou que se habituou “a conseguir das mulheres aquilo que queria” (Vitaly Scherbo em 2010) ou em que uma ciclista é apanhada com um motor dissimulado na sua bicicleta (Femke van den Driessche, no Mundial de sub-23 de Ciclocrosse de 2016)?
(continua...)"

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