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quarta-feira, 27 de maio de 2020

Em memória de uma antiga opulência

"O Benfica sempre se deu bem com adversários da Hungria, mesmo quando os húngaros ainda era dos grandes da Europa. Os velhos nomes passaram pela Luz: Upjest, Vasas, Honvéd... No dia 1 de Novembro de 1989, o mágico clube de Púskas perdeu em Lisboa por 7-0.

Um mal insidioso tomou conta do mundo, espalhando-se como um fedor, virando-nos de costas uns para os outros, transformando a nossa vida numa coisa qualquer que não é a nossa vida. Olho para a data do calendário e percebo que não saio de Alcácer há mais de dois meses, e foi como se tivesse posto na porta da existência letreiro a dizer. Volto já! Maio, não tarda, caminha para o fim. Deveria estar neste momento a preparar-me para ir para mais um Campeonato da Europa, o sétimo da minha carreira de jornalista, viajando para Budapeste, essa cidade sempre sentimental onde Portugal jogará, eventualmente para o ano, o primeiro jogo da fase final. Mas não. Os países escolheram-se dentro de si próprios. Fecharam fronteiras. O futebol caiu num desânimo que entristece adeptos, e nem o anúncio de que vai voltar, ainda que sem público nas bancadas, parece animar as gentes.
O Benfica sempre se deu bem com adversários húngaros. Desde o seu primeiro confronto, em 1960-61, com o Upjest, para a Taça dos Campeões que haveria de conquistar. Vitória por 6-2 em casa; 1-2 na Hungria. Em 1964-65, nas meias-finais, foi a vez do Vasas Gyor: 1-0 fora e 4-0 na Luz. Em 1967-68, nos quartos-de-final, outro Vasas, o de Budapeste: 0-0 e 3-0. O Ujpest vingou-se em 1973/74: 1-1 e 0-2. Em 1975-76, pagou o atrevimento com juros: 5-2 na Luz, 1-3 na Hungria. Depois, o futebol húngaro ficou doente, também atacado por uma espécie de epidemia. Mole, sem chama, perdeu a categoria do passado e os nomes de Kubala e Czibor, Púskas, Hidegkuti e Florian Albert não tiveram sucessores à altura. Ficaram para sempre guardados na memória do romantismo.

1 de Novembro
Quando, no dia 1 de Novembro de 1989, estive na Luz, em trabalho, no Benfica-Honvéd, sabia que o Honved já não era mais a equipa assustadora no final dos anos 40, princípios de 50. Clube do exército húngaro, tinha gente como Ferenc Púskas, que ganhou a alcunha de Major Galopante, Sàndor Kocsis, József Bozsik e Zoltán Czibor, e um treinador chamado Bélga Guttmann. Mas o nome estava ali, sobreposto à realidade. Era o Honved, e só isso merecia uma vénia e um obrigado por tudo quanto deu à história do futebol.
Na Hungria, o Benfica vencera por 0-2. O jogo de Lisboa foi um passeio, numa tarde agradável e luminosa. Os benfiquistas andavam felizes com o regresso de Sven-Góran Eriksson, apesar de Toni, que passou para seu adjunto, ter levado a equipa ao titulo nacional e à final da Taça dos Campeões Europeus perdida nos penáltis para o PSV Eindhoven. Era tempo de sonhos grandes na Europa dos grandes. Os jogadores de categoria afirmavam a categoria: Aldair e Ricardo Gomes no centro da defesa; Valdo, Thern e Vítor Paneira no meio-campo; Diamantino e Magnusson na frente.
Um vendaval vermelho percorreu o relvado verde, bonito. Um futebol gracioso, encantador, à moda dos antigos húngaros, aqueles que se atreveram a ir a Wembley bater a Inglaterra por 6-3, e, no encontro de desforra, chegaram ao descaramento divino que o Eça atribuía ao Alencar: 7-0.
E 7-0 também na Luz, primeiro de Novembro, feriado.
César Brito (15' e 42'), Abel Campos (36'); Vata (62' e 64') Mats Magnusson (86' e 89').
Ah! Pobre Honvéd, de tal, forma destruído. Destruído pela sabedoria de Valdo, de régua e esquadro e tira-linhas, a fazer desenhos finos, a tina-da-china, traçando arbitrárias e pondo os companheiros no caminho da baliza de um infeliz Péter Diszit. Já não lhe bastava o nome complicado, de provocar cãibras na língua de qualquer cidadão português que resolvesse relatar o que se ia passando numa Luz cheia de luz, sobrava-lhe a infelicidade de ter pela frente defesas incapazes e avançados assassinos, os primeiros da sua própria equipa, claro está, os segundos com as camisolas rubras de águia ao peito.
Era apenas um Honvéd bisonho, só com nome e sem conteúdo, mas também tinha sido, primeiro, e Derry City(1-2 e 4-0), como seriam depois o Dnipro (1-0 e 0-3) e o Marselha (2-1 e 1-0), antes da final impossível com o Milan intratável dos holandeses Rijkaard, Gullit e Van Basten (0-1).
A águia voava pelos céus da Europa e sentia-se bem, era ali o seu lugar. Talvez esses céus ainda tenham guardado um lugar para o seu regresso. Um lugar vermelho, agora vazio."

Afonso de Melo, in O Benfica

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