Últimas indefectivações

sexta-feira, 18 de março de 2022

A falácia da neutralidade


"Se podemos considerar os J. O. de Berlim, em 1936, como a primeira grande exploração política do desporto, também teremos de considerar que foi nestes que os atletas foram talvez pela primeira vez politicamente usados. Para lá de Jesse Oewns e de Lutz Long entre outros, e como exemplo, citamos o caso do vencedor da maratona, o coreano Sohn Kee-chung, o qual teve de correr com as cores japonesas e com o nome Kitei Son dado o seu país se encontrar ocupado pelo Japão.
No México, nos J. O. de 1968, o americano Tommie Smith correu pela primeira vez os 200 metros em menos de 20 segundos. Em terceiro lugar ficou o seu compatriota John Carlos. Os três medalhados – em segundo lugar classificara-se o australiano Peter Norman – apresentaram-se no pódio com um crachá ao peito a favor dos direitos humanos. Ao iniciar-se o hino nacional, Smith e Carlos ergueram o punho fechado com uma luva preta, a saudação típica dos Black Panthers, em sinal de protesto contra as desigualdades nos direitos civis nos Estados Unidos. Smith e Carlos terão sido provavelmente os primeiros atletas a trazerem a política para o desporto.
Se o desporto é neutro ou não, ou se o deveria ser ou não, depende da perspectiva de cada um e dependerá principalmente da dimensão, do proveito, da conveniência e das necessidades de organizações, de dirigentes desportivos e de políticos. Há muito que, no desporto, um “sistema de agentes e de instituições começou a funcionar como um campo de concorrência onde se afrontam agentes com interesses específicos ligados à posição que nele ocupam”, como salienta Pierre Bourdieu (1) no seu texto intitulado “Como se pode ser desportista?”.
Os J. O. de Munique, em 1972, foram um marco na intromissão da política na competição desportiva – o boicote da grande maioria das nações africanas à participação da então Rodésia, o que motivou uma decisão repentina do COI: a expulsão da representação rodesiana do evento. Também os boicotes de ambos os lados nos Jogos Olímpicos realizados na então URSS (1980, Moscovo) e nos organizados nos EUA (1984, Los Angeles) nos mostram essa intromissão.
Quem foram os grandes prejudicados com esses boicotes? Sem dúvida os desportistas que se viram impedidos de participar em ambos os J. O., apesar de para eles se terem preparado. No entanto houve excepções por parte daqueles que conseguiram contornar a situação: como refere Olivier Villepreux (2) a sul-africana Zola Budd naturalizou-se britânica para escapar ao boicote do seu país em 1984 em troca de 280.000 dólares pagos pelo «Daily Mail» tendo as formalidades sido resolvidas em apenas dez dias...
No momento em que tanto o COI como a FIFA, a UEFA e as federações internacionais impedem os desportistas da Rússia e da Bielorrússia de participarem em diversas provas internacionais, coloca-se a questão de sabermos se esses impedimentos para além de éticos são lícitos. Que culpa têm os desportistas de terem nascido num país dirigido por este ou por aquele político e por estarem debaixo deste ou daquele regime? Os que escolheram como profissão o desporto dependem deste como do pão para a boca. No entanto nem a URSS foi impedida de disputar competições internacionais aquando da invasão da Hungria em 1956 ou da Checoslováquia em 1968, nem os EUA foram igualmente impedidos de participar em qualquer competição internacional aquando da invasão do Afeganistão em 2001 ou do Iraque em 2003.
No extremo oposto, temos os desportistas ucranianos impedidos de treinarem e competirem por força de terem tido a necessidade de pegar em armas para defenderem o seu território… Que culpa têm os desportistas de terem nascido num país colocado a ferro e fogo? E estes, se escolheram o desporto como profissão, também dependem deste como do pão para a boca…
Mas também temos desportistas autorizados a continuarem a competir sob a chamada «bandeira neutra», como por exemplo a tenista bielorussa Victoria Azarenka… tal como tivemos desportistas russos nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022 em Pequim a competirem com a designação ROC (Russian Olympic Committe) e não em representação da Rússia! A Federação Internacional Automóvel (FIA) também permite que pilotos russos e bielorussos continuem a participar em provas de Fórmula Um desde que não usem as cores ou as bandeiras dos respectivos países – era o caso de Nikita Mazepin… entretanto colocado numa lista de sanções aplicadas pela União Europeia e, por isso mesmo, tendo a Haas rescindido o seu contrato.
Perante a actual situação, não mais poderemos reclamar uma neutralidade política do desporto sem cairmos numa hipocrisia mais do que declarada. Não enquanto negociantes de bens e de serviços desportivos, usando as palavras de Bourdieu, continuarem a influenciar e a exercer o seu domínio no desporto.
Uma actividade eminentemente associativa e que se pretendia veículo de valores e unificadora dos povos apresenta-se agora como um instrumento de desígnios que nada deveriam ter a ver com a mesma. Encontra-se contaminada pelo comércio e pela política!
Não falemos mais em valores ou em princípios morais e éticos no e do desporto enquanto os desportistas permanecerem a ser usados para o melhor ou para o pior – enquanto continuarem a ser explorados. Não enquanto os desportistas forem induzidos e tiverem sido preparados para descobrir satisfação no próprio esforço “e para aceitar – é esse o próprio sentido de toda a sua existência – gratificações diferidas em troca do seu sacrifício presente” como nos refere o mesmo Bourdieu. Não falemos mais em valores ou em princípios morais e éticos no e do desporto enquanto os donos do desporto, e recorremos de novo a este autor, “encontrarem nisso uma ocasião de impor os seus serviços políticos de incitamento e de enquadramento e de acumular ou alimentar um capital de notoriedade e de honorabilidade sempre susceptível de ser reconvertido em poder político”.
Os últimos tempos têm sido ricos e exemplificativos deste paradigma não só a nível internacional como também entre nós…"

Sem comentários:

Enviar um comentário

A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!