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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Miguel Oliveira e as fontes de contágio das vitórias


"Contrariamente a Miguel Oliveira, que até em pé se aguenta em cima de uma moto com mais de 150 kg, esta vossa desengonçada nem a sentar-se sorrateiramente, para se fingir rebelde, conseguiu evitar o tombo. Não tendo a memória mais precisa do mundo, já não sei apontar a idade que tinha, mas lembro-me que ainda mal chegava à altura do Evereste que a moto do meu pai me pareceu naquele dia. Na verdade, também não sei que moto era aquela, apesar de a recordar como grandalhona, preta e metálica, o que na minha cabeça era apenas sinónimo de Harley, mesmo que o veículo pudesse ser de uma marca branca de motorizadas.
Ora, inspirada não se sabe muito bem pelo quê, apanhei-me sozinha na garagem e decidi iniciar então a pesada escalada até ao Evereste do assento. À chegada ao cume, deu-se o infortúnio: tombei, eu e a amostra de Harley, com ela lamentavelmente a sair em melhor estado do que eu, já que foi o meu pé a ficar entre o esmagado e o preso debaixo do peso do metal.
Depois de muita choradeira, lá se fez o diagnóstico: um pé torcido, muitas dores e uma lição para uma criança.
Desde então, nunca mais quis saber de motos e, perdoem-me os fãs e o próprio Miguel Oliveira, não tenho nenhum apreço especial por ver MotoGP, apesar de saber, evidentemente, que a vitória deste domingo foi um feito digno dos maiores encómios para um piloto português - e foi por isso que logo se apressaram, claro está, o presidente da República, o primeiro-ministro, o secretário de Estado da Juventude e do Desporto, o líder do PSD, etc e tal, a juntar-se à festa.
Serve este longo introito sobre a minha infelicidade juvenil com uma mota e respetivas consequências - enquanto Miguel Oliveira, pelo contrário, crescia feliz entre triciclos elétricos e moto 4 - para chegar a esta meta: se não permitimos às crianças de hoje que retomem a atividade desportiva, como é que vamos ter mais exemplos como o de Miguel Oliveira no futuro?
E quem diz Miguel Oliveira diz também Telma Monteiro, Jorge Fonseca, Cristiano Ronaldo, Diogo Jota, Bruno Fernandes, João Félix e José Mourinho, só para citar alguns dos portugueses que se destacaram no desporto mundial este fim de semana.
É na juventude que estes exemplos crescem, através da prática desportiva diária, para chegar ao nível mais alto das respetivas modalidades. Mas, atualmente, as restrições impostas à atividade desportiva de formação não permitem qualquer crescimento e prejudicam gravemente uma geração de jovens portugueses, até em termos de saúde mental. E isto tudo já se sabendo entretanto que a prática desportiva, por exemplo, no futebol, não é "uma atividade de alto risco", ao contrário dos convívios familiares, apontados pelas autoridades como responsáveis por 68% dos contágios.
E das vitórias - neste caso, de Miguel Oliveira - também já há fontes de contágio identificadas: os políticos portugueses, sempre os primeiros a congratularem-se com orgulho pelas conquistas dos desportistas portugueses, com a mesma hipocrisia com que ignoram a importância da prática desportiva no crescimento dos jovens."

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