"Camisola vermelha comprada numa feira, um “4” feito à mão e cosido pelo meu Pai nas costas, uns calções verdes, curtos como se fossem cuecas, e umas chuteiras simples. Um bigode postiço, uma cabeleira frondosa. Quando eu corria, fazia aquele compasso de espera enganador, fintava uma pedra, voltava a rodopiar, levantava a cabeça. Arrancava veloz pelo campo. Um pinheiro pedia-me a bola, isolado. Fingia que passava, metia para dentro, corria, olhos no chão, olhos na bola, olhos em frente. Peito feito sobre o ar vespertino, a bola chegando-me aos joelhos. Pai, e se eu fosse o Chalana?
O carro estava estacionado numa clareira com o som do relato das meias-finais do Euro-84 a ressoar por entre os ramos das árvores e os céus de um Sábado de Junho. Portas abertas, todas, bagageira para cima, com bolos, pão, vinho, rissóis, empadas e panos feitos numa máquina Singer que a minha avó rodopiava nas mãos e nos pés feita malabarista no escuro em frente a uma parede com fotografias de gente muito velha a preto e branco. Jazem aqui flores e nomes e cães iguais aos que há agora mas a cinzento e há tanto tempo mortos. Quantos cães tem uma vida?
Há uma voz histriónica que vem do rádio e ressoa por entre os ramos. Anuncia lances perigosos, jogadas de quase-golo, defesas impossíveis. Nós num descampado em Abrantes e os patrícios em Marselha enquanto os cestos de verga abanam no gooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo e nunca mais ninguém sabe de quem é o golo, se é golo, se já foi e alguém vem e pergunta:
- Golo de quem? Golo de quem?
A minha camisola tem o “4” milimetricamente na diagonal - não se vê a um metro de distância, mas está lá, não foi trabalho de fábrica, houve mão de amador, aquele que ama. Na frente, há pescoço porque há decote em redondel verde e o vermelho é um vermelho mais escuro e não se vende nas lojas oficiais, porque as lojas oficiais ainda não existem e porque há coisas que as lojas oficiais não podem vender. Mas há uma espécie de pequeno Genial a correr nos pinheiros. E vários golos porque o golo tanto pode ser imaginário como entrar no meio de dois calhaus que são balizas - o jogador decide, no calor do momento. A distância entre este Chalana e o carro depende dos gritos que ecoam. Claro que os pés não sabem por que razão avançam para os pastéis de bacalhau quando há grito de golo na rádio mas o coração não tem dúvidas: vai à espera do golo da Selecção.
- É agora? Foi golo de Portugal?E aquele som contínuo, não no "g" que demora pouco, mas no "o" - quantos ós e desesperantes - e toda a gente parada, eu, o meu Pai, os meu avós, comensais que se aproximam, as rodas do carro, as folhas, o gesto das febras na grelha, o céu e as nuvens que deixam de construir imagens - tudo parado. É golo, mas de quem? Goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo...
E antes do "l" e muito antes do "o" que o continua olhos não no rádio mas uns nos outros, eu olho o meu Pai que me olha a mim que o olho a ele. O "4" cosido nas costas a olhar para nós e os pedaços de terra saltam e ficam no ar à espera. Diz Portugal, diz Portugal, diz Portugal, o coração aos pulos, diz Portugal, diz Portugal, diz Portugal, as pernas flectidas, joelhos em silêncio, quase dor muita dor, braços à espera, mãos curvas, ouves o som do público?
É indefinível, gritam todos e muitos, não sabemos quem nem por quem nem onde. Há som e ruído, imaginamos bandeiras sob o sol, cachecóis no vento, abraços, gente aos gritos, garrafões tombados. Mas é Portugal ou a França? E o "oooooooooooooooooooooooooooooooooooo" continua, o locutor tem fôlego, não se cala, mantém a surpresa na garganta, a bola junto a uma das rodas do carro, esquecida e adormecida, esperando o movimento. Não há movimento, só um grito que não acaba, e o golo, o golo é de quem?
Há uns sons metálicos de assobio enquanto o rádio canta. Ondas de silvos no meio dos óculos da avó que retira pratos e garfos e facas de plástico do interior de um saco rendilhado a rendas de bilros.O carvão todo junto, negro, colante, uma imagem de um sol sobre a estrada de terra e uma menina que corre, indiferente ao golo, pelos cogumelos e musgo. De quem é o golo?
O vestido às rosinhas não sabe, prefere dançar oblíquo sem rota nem bandeira. O golo, que é de alguém, não chama aquela corrida atrás de uma borboleta que faz desenhos no ar e depois desaparece.
- Deeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee… Portugaaaaaaaaaaaaaaaaaaal! Joooooooooooooordão!
e os meus olhos abraçam os ombros do meu Pai e depois continuam para o espaço atrás dele com os olhos dele para o espaço atrás de mim e os olhos em chama, ombros em chama, a bola chega a Chalana que faz um passe amanteigado para o ar que o maravilhoso jogador-esférico que é o Jordão, com aquela cabeça de veludo e pernas que nunca mais acabam, suavemente direcciona para o cantinho mais distante da baliza gaulesa.
Dez anos depois da Liberdade, os nossos patrícios podem voltar a sonhar."
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