"Ir à bola não é para todos. Para ir à bola é preciso ir com quem queira ir à bola. E sobretudo é fundamental ir com gente com a qual nós vamos à bola. Se, por alguma esférica razão, não vamos à bola com este ou com aquele, o melhor é esquecer: não vão connosco à bola.
Ir à bola é uma coisa séria, é uma coisa de brincar. A bola é caprichosa, é perigosa, tem os seus dias. Há as primeiras bolas, as segundas bolas, a bola que entra e sai, a bola que nem sequer chegou a entrar, a bola em cima da linha, a bola que saiu por fora. A bola que foi quase-golo, foi auto-golo, a bola molhada, a bola pesada, a bola em folha-seca, a bola em banana, a bola que se aninha no canto da coruja, a bola humilde, a bola cheia, a bola vazia, a bola em trivela, a bola de cima para baixo, a bola de baixo para cima, a bola de longe, o futebol sem bola.
Há bolas que, bolas!, nem para golo servem. Bolas que foram mal chutadas, nas orelhas, no nariz da bola, no bico, nas figadeiras da bola. Bolinhas, bolinhos, bolas aéreas, perdidas, bolas quadradas. Para ir à bola é preciso primeiro bolar um plano. E que todas as bolas da sorte estejam alinhadas para podermos ir à bola.
Nas manhãs domingueiras dos anos 80, em Abrantes, lembro-me de estar com o meu Pai à espera de saber se o jogo daria na televisão ou se seguíamos para o estádio para ir à bola ao vivo e a cores. Isto era um fenómeno que emocionava as massas lá em casa, a indefinição, será que dá, será que não dá? A dúvida. O coração a palpitar querendo e não querendo: "Diz que dá, diz que não dá!", e o meu Pai olhava-me e eu olhava-o e tínhamos os dois o ir à bola e o coração da mesma idade.
- Vai jogar à bola, já vemos.
E eu ia para o meu pátio rematar a bola em folha-seca, em trivela, bolas molhadas e perigosas e cheias e vazias e quase-golos, auto-golos, bolas que entravam e saíam, que eram primeiras e segundas e terceiras bolas, que saltavam no ar, que vinham aéreas de cima para baixo e de baixo para cima, que entraram, que quase saíram, bolas em cima da linha, bolas redondas, sempre à espera de saber se íamos ou não à bola.
Depois, a poucas horas do começo do jogo, enquanto eu ganhava mais uma Taça dos Clubes Campeões Europeus no pátio da minha casa, o meu pai lia no ecrã dessa televisão sem comando, cheia de botões, o trágico-maravilhoso anúncio de que "infelizmente, problemas técnicos impedem-nos de garantir a perfeita transmissão do jogo". Por aqueles dias, as antenas e satélites da RTP eram sempre tômbolas mágicas que agitavam as bolas do bingo e os números iam saindo em caos criando uma linha de milhares de adeptos de província rumo aos estádios deste país. O meu Pai vinha ter comigo cá fora, enquanto eu levantava uma orelhuda nos braços:
- Hoje não dá o jogo.
E eu pousava a taça no chão, por entre potes de barro e linhas de cal traçadas no cimento, e entristecia com aquela manha infantil própria de saber que o meu Pai ia salvar-me da miséria.
- Vai buscar o cachecol, vamos à bola!
E então embarcávamos na grande barca dos sonhos, com os cachecóis presos no vidro, buzinando aos outros pais e aos outros filhos, centenas, milhares de adeptos a caminho do estádio. Íamos todos à bola."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!