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terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Qualidade de jogo. O que é isso? Uma tese que defende a objetividade das diferenças entre o bom e o mau futebol


"A pergunta sempre existiu, e a maior parte das pessoas, para se defender, diz que a qualidade é subjectiva. Sérgio Conceição fez, aliás, na conferência de imprensa antes da Supertaça Cândido de Oliveira, uma comparação com o valor da arte que tem sido amplamente utilizado para rebater a questão da qualidade.
O futebol é um jogo em que se diz demasiadas vezes que existe grande subjectividade naquilo que é a noção de bom ou mau futebol, em defesa de cada forma de jogar. Ou seja, fala-se do futebol como se fosse um jogo sem regras e sem constrangimentos que nos indiquem quais são os caminhos que maior probabilidade de sucesso nos dão em relação a outros. Quando se assume a posição de "esta é a minha opinião, a minha forma de pensar e sentir o jogo, e a minha ideia em relação a esta situação", fala-se como se essa assunção garantisse a maior ou igual validade da ideia em relação a outras.
Isto é, como é óbvio, todos temos formas diferentes de ver, sentir e interpretar. E todos temos o direito à opinião. Porém, tal não implica que essa opinião, essa forma de sentir e interpretar, tenha maior, menor ou igual valor em relação a outras. Desengane-se quem pensa isso do futebol, porque o futebol é um jogo que tem regras, que tem constrangimentos criados por elas, e que por isso tem formas de jogar melhores do que outras. Claro que, por ser um jogo dominado por imponderáveis como nenhum outro, todas as ideias podem resultar em vitórias. Veja-se o Leicester de Ranieri (treinador que nunca ganhou nada de grande relevo, com exceção desse feito extraordinário na Premier League) e o feito de Di Matteo quando vence a Champions pelo Chelsea. Nenhuma forma garante a vitória, mas há que entender que existem formas que mais se aproximam dela. Formas que nos dão indicadores de uma maior probabilidade de sucesso tendo em conta a qualidade dos jogadores e do adversário. Não se trata de jogar bonito, mas sim de jogar bem em cada momento.
Não quero estar aqui a afrontar crenças enraizadas e amplamente difundidas, porque compreendo o valor da democracia, mas há um reparo que precisa de ser feito: um jogo de futebol é bastante objectivo. Tem regras, e as regras levam a determinados constrangimentos e princípios de ação que se consideram mais corretos face a outros. Não há que ter vergonha ou receio de assumir isso. As regras do futebol ditam que determinados caminhos facilitam a tarefa de cumprir com o objetivo do jogo mais do que outros.
Por isso, há jogar bem e jogar mal; há decisões certas e decisões erradas.
Obviamente, tal não significa que jogando mal não se consiga vencer:
1) porque entre dois adversários que jogam mal continuam a existir três resultados possíveis;
2) porque o adversário pode ter jogado pior do que nós;
3) porque existem imponderáveis que ditam o destino de um jogo de pontuações baixas como o futebol, e muitas vezes o acerto numa ação de golo destrói no final uma equipa que acertou muito exceto no momento de finalizar.
Vem isto ao caso de muitos outros jogos que temos assistido na Liga portuguesa. Há justos vencedores? Sim, na maior parte dos jogos. Foram esses vencedores a melhor equipa em campo? Também foram, na maior parte dos jogos. Significa isto que tenham jogado bem? Na maior parte das vezes, não. Jogaram melhor que o adversário, mas não tiveram qualidade de jogo. E não, não é jogar bonito; é jogar bem!
E o que é jogar bem? Jogar bem é atacar o melhor possível e defender o melhor possível. Ter um modelo de jogo, uma identidade, é um começo. Jogar como equipa, reconhecer que comportamentos aplicar em função do treino, é parte essencial de qualquer equipa que se queira vencedora. Mas pode uma equipa que jogue como equipa estar a jogar mal? Claro. Se os princípios coletivos desta equipa forem contra a lógica do jogo, significa que estão a jogar mal, apesar de o fazerem coletivamente. Jogue-se com que modelo se jogar, a atacar mais ou menos, com jogadores de maior ou menor qualidade, as regras do jogo são as que temos. E as regras aplicam-se seja o futebol jogado por galinhas ou por seres humanos. E à partida, por um maior entendimento do jogo ou simplesmente por terem uma fisionomia mais indicada para jogar futebol, os humanos vencerão todos os jogos – jogando bem ou mal. As galinhas podem estar organizadas da forma que entenderem, escondendo as suas fragilidades e tirando partido dos seus pontos fortes, podem jogar como equipa, mas será muito difícil que joguem bem futebol porque lhes faltará capacidade para o jogar de acordo com as regras. Por isso, apesar da equipa estar bem organizada, esconder os seus defeitos e realçar as suas qualidades, apesar da possibilidade de ser forte como equipa, nada disso garante que esteja a jogar futebol de qualidade, porque a única coisa que garante a qualidade é seguir o que dita a lógica do jogo.
O jogo dita, por exemplo, que apenas se jogue com uma bola, dita um espaço de jogo retangular com duas áreas, dita que não se pode usar as mãos para tocar na bola com exceção dos guarda-redes dentro da área que defendem. Diz ainda que ganha a equipa que no final do tempo de jogo conseguir o maior número de golos validados pelo árbitro, e que a forma de marcar um golo é colocar a bola dentro da baliza (que se encontra na linha de fundo, no corredor central) do adversário. Também diz que cada equipa defende uma baliza, e que derrubar um adversário na área dessa baliza, sem tocar na bola, dá direito a um pontapé da marca de grande penalidade, etc, etc, etc.
Nada disto é subjetivo, e tudo isto são guias que nos levam a intuir o que fazer e o que não fazer para se vencer um jogo. Claro que, para tal, é preciso pensar um pouco, e logo percebemos a objetividade do jogo de futebol. Passamos a vida a dizer que o futebol é só um jogo, mas na hora de o avaliar pensamos pouco nas regras que nos deveriam guiar na avaliação do mesmo.
Olhando para o tipo de avaliação generalizada que vou vendo por aí, percebo que a maioria escolhe focar-se no momento defensivo de cada equipa por ser o momento mais fácil de analisar e entender, e as análises à forma de atacar são quase sempre simplistas – é o tema preferido das análises tático-estratégicas. Mas qual é afinal o real valor desse momento tendo em conta o objetivo do jogo? Todo. Mas, nunca podemos valorizar o momento defensivo apenas pelo que ele permite na defesa da baliza, uma vez que é esse mesmo momento que vai permitir depois da recuperação da bola o início do momento ofensivo. Isto é, passa-se a vida a elogiar posicionamentos e estratégias para defender a baliza sem pensar que depois da recuperação da bola é aquele posicionamento que permite de forma melhor ou pior o início do ataque.
Por exemplo: não vejo dizer que defender com 10 homens nos últimos 30 metros vai causar dificuldade na transição ofensiva. Não vejo dizer que os espaços super reduzidos em que a equipa se coloca quando defende por estratégia, ou por modelo, vão possibilitar ao adversário mais facilmente recuperar a bola e voltar a atacar do que a quem defende sair daquele espaço com condições para tentar marcar golo. Não tenho lido que quando vais homem a homem, e deixas que seja o adversário a ditar para onde vão os jogadores da tua equipa, recuperas a bola e os espaços que os teus jogadores ocupam não são uniformes e condizentes com aqueles que trabalhas para eles aparecerem no momento ofensivo. E que essa alteração, do tempo que o jogador tem para chegar a posição que pretendes, é benéfica para quem perdeu a bola voltar a recuperá-la. Não leio que o momento defensivo não é apenas aquele em que a bola está próxima da baliza, e que as opções sobre onde ser agressivo sobre a bola têm peso na hora avaliar a defesa.
Ou seja, o momento defensivo tem sido analisado pela máscara de comportamentos que permitem determinadas coisas e têm sido ignoradas as consequências negativas e os benefícios para o adversário. Como sempre, e com as centenas de ferramentas que temos hoje, continua a ser elevado pela vitória per si. O momento defensivo não pode ser apenas valorizado por aquilo que permite perto da baliza, e de forma redutora pelo que permite na defesa da mesma. O futebol é um jogo onde atacas a defender e defendes a atacar. E custa-me cada vez mais perceber que o jogo está a ser desvalorizado ao jogar-se com apenas uma baliza, e ainda por cima num sentido oposto à sua própria lógica: ganha quem marcar mais golos.
Apesar de todo o crescimento do jogo, do entendimento do jogo, a vitória continua e continuará por certo a ser o principal catalisador de opinião favorável ou desfavorável sobre uma determinada equipa, sobre a ideia que coloca em campo, e sobre o valor dos seus jogadores. Uma equipa que ganhe tenderá a ser sobrevalorizada, e recairá sobre ela a procura de respostas para o resultado daquele jogo. Nós já não vemos os jogos e usamos o resultado como princípio para explorar a nossa análise e formar a nossa opinião sobre o porquê de o jogo ter seguido aquele rumo. Como o nosso ponto de partida já leva o pressuposto de que para ter ganho a equipa deve ter tido pontos de superioridade fundamentais para a outra, a análise já começa viciada. Talvez por isso não seja hoje raro, mesmo nas mais badaladas análises, ver críticas e elogios a comportamentos semelhantes; ver mudanças de opinião radicais sobre o que era e sobre o que foi antes e depois de se olhar para o resultado.
O jogo é simples, de facto. E é no entendimento dessa simplicidade que está complexidade que lhe atribuem. Criar situações de golo, não permitir que o adversário crie. Neste sentido: do ataque para a defesa. E digo neste sentido porque não há (salvo situações em que o empate serve para cumprir o objetivo) outra forma de determinar quem sai vitorioso. E se assim é, como é possível elogiar ou dar mérito a uma equipa que ganhou por ter marcado na única situação que criou e concedeu seis ocasiões de golo ao adversário? O que há afinal para elogiar aí? O de sempre, agora simulado pela sobrevalorização de certos comportamentos táticos e individuais que no fundo não tiveram preponderância nenhuma.
Repare que, no final de uma competição, alguém sairá vencedor... sempre. E desse ponto de partida percebe-se que a condição fundamental para cortar a meta em primeiro lugar é lá estar. Isto é, qualquer um arrisca-se a ganhar desde que esteja inscrito na competição. E, a não ser que se considere um grande mérito estar inserido numa qualquer prova de futebol, o ganhar por si só não revela competência ou qualidade por parte da equipa que sai vitoriosa no final. Nem os jogadores têm mais qualidade do que os outros por terem vencido, nem o treinador tem mais competência por ver a sua equipa coroada no final.
Pode, sem ser absurdo nenhum, uma equipa vencer o campeonato e as provas europeias sem treinador, por ser individualmente muito superior. O principal atalho para uma equipa conquistar os objetivos a que se propõe é o jogador. O grande desequilibrador, à priori, de jogos de futebol, é a diferença de qualidade entre eles. E mais uma vez, a diferença não está em quem sai vitorioso no final do jogo, mas sim na forma como cada um joga. Isto é subjectivo? Não. As regras dizem que, por exemplo, um jogador que esteja constantemente a fazer faltas dentro da grande área é um jogador que está a jogar mal o jogo, por estar a diminuir com as suas ações as probabilidades de êxito da equipa. E é, portanto, um jogador de menos qualidade do que um que não esteja de forma constante a fazer faltas dentro da grande área, quando a equipa não tem a bola.
Se uma equipa quer ganhar consecutivamente, o passo fundamental a dar é ser mais forte do que a concorrência na qualidade individual dos jogadores. São eles que jogam, que fazem a bola rolar, que marcam golos, e que resolvem os problemas do jogo. A aposta incondicional deve ser neles, porque quem tiver os melhores jogadores, com ou sem treinador, será sempre o maior candidato a conquistar as provas em que está inserido.
Há, porém, outros fatores de desequilíbrio no jogo. Fatores externos, que vão influenciar a performance dos jogadores. A forma como o arbitro guia o jogo, o maior ou menor estado de inspiração ou confiança do jogador, o clima, o estado do campo, o ruído exterior dos agentes do clube ou dos meios de comunicação, o público, as relações pessoais do jogador, a sorte, etc. É um jogo que impõe uma interação tal de seres humanos que se tornam incontáveis os imponderáveis que no final influenciam o desfecho de um jogo e de uma competição.
Mas, como vivemos numa sociedade onde todos procuram por justificações – factos - para explicar o sucesso de determinada figura ou de determinado evento, a conclusão é sempre igual. Por exemplo, se um treinador ganha e ninguém percebe exactamente o seu dedo nos padrões de jogo da equipa, ou se esses mesmos padrões não têm qualidade e não deveriam dar resposta aos problemas que o jogo apresenta, então torna-se unânime que a vitória foi da liderança. A conclusão é sempre a mesma, porque andam todos a fazer a mesma pergunta. Como a pergunta já assume que algum mérito de peso há de ter, mais de meio mundo fica incomodado quando aparece alguém a questionar, a dizer que uma equipa pode ganhar independentemente do treinador, ou que o mérito do treinador é tanto quanto o mérito do observador dos adversários, do nutricionista, ou do comportamento do público nos estádios (há mérito, mas não é o fundamental para o sucesso).
Sei que andei o tempo todo a fugir da questão do futebol de qualidade, mas aqui vai nas palavras de Arrigo Sacchi: as grandes equipas da história tiveram uma coisa em comum. Controlavam a bola e o espaço. Isso significa que quando tu tens a bola mandas no jogo, e quando não a tens só controlas o espaço.
Não encontrei melhor do que isto. Atacas a defender e defendes a atacar. É a diferença entre jogar-se com a bola ou apenas em função dela."

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