"Estranhas voltas que a vida dá.
Em poucas semanas, o mundo mudou como há muito não acontecia. E tem tido a sua piada. Parece que foi ontem que ouvi a direção do Sporting, pela voz do presidente Frederico Varandas, anunciar que o clube tinha escolhido para novo treinador uma pessoa que, daqui a 4 ou 5 anos, iria estar num grande clube da Europa, chegando ao ponto de excluir a possibilidade de esse grande clube da Europa ser o Sporting. Em circunstâncias normais, tal afirmação faria parte da família de irritações leoninas ao estilo de «Não é Sporting Lisbon! É Sporting Clube de Portugal!» de cada vez que há um sorteio de competições europeias ou um jogador do Sporting é vendido. A frase foi proferida para explicar que a triste sina que se dera com Ruben Amorim seria, também, o fatídico destino de João Pereira.
Frederico Varandas quis explicar aos sportinguistas que eles tinham aquilo a que na gíria se chama um bom problema. Seriam mais uma vez vítimas do sucesso das escolhas do presidente, não obstante algumas — ou grande parte — dessas escolhas se terem revelado desastrosas. Acontece que o bom problema se tornou um problemaço dos grandes.
Tendo já passado por momentos muito sofríveis na vida do meu clube, não vou fingir que este problema é um exclusivo dos outros. Também eu já sofri com treinadores condenados ao insucesso quase desde o primeiro momento e sobrevivi para contar a história, conseguindo hoje rir desta. Por isso, permitam-me saborear aquilo que se vive por estes dias com uma certa simplicidade de processos. Nenhum benfiquista nasce propriamente para celebrar as derrotas dos outros, mas decidi abrir uma exceção a essa regra para assistir à proverbial queda do Sporting por alturas do Natal. É como se uma velha história que julgávamos finalmente esquecida aparecesse agora num remake da Netflix sem qualquer pré-aviso. Um certo dia, liguei a app de streaming e, sem que nada o fizesse prever tão repentinamente, o Sporting estava de volta.
Tenho perguntado isto a alguns amigos sportinguistas, os poucos que se disponibilizam para conversar comigo, mas nenhum me consegue esclarecer: alguém se lembra de ver uma equipa cair tão abruptamente, literalmente de um dia para o outro, como esta do Sporting? Dada a minha pontaria nem sempre afinada nestas coisas, é possível que, após a publicação deste texto, os jogadores e o treinador do Sporting arranquem para uma nova série de vitórias consecutivas, mas, depois de ter visto as recentes exibições, parece-me pouco provável.
Há casos particularmente engraçados, como o de Conrad Harder, outrora um promissor avançado com queda para as alas e um remate potente, transformado agora num indivíduo nórdico com ar de quem invadiu o relvado mas é demasiado pesado para ser retirado de lá.
O responsável por esse truque de magia jamais o admitirá em público, mas nada deve orgulhar mais Ruben Amorim do que ver a importância quase milagrosa do seu trabalho no Sporting ser confirmada pelo desastre que lhe sucedeu.
Como tenho dito a quem me quer ouvir, Ruben Amorim fez muito bem em não perder o tal comboio que só passa uma vez, mesmo que o comboio de Manchester pareça uma locomotiva a vapor a descer rumo ao coração das trevas.
A vida prega partidas danadas. Um dia estamos a treinar um Geny Catamo e um touro sueco que fazem tudo o que se lhes pede, no outro estamos a tentar lidar com Maguire e Zirkzee perante a expectativa de milhões de adeptos acometidos por um caso agudo de dissonância cognitiva entre o conceito de Manchester United e aquilo que o clube efetivamente vale hoje.
É, no entanto, um comboio que paga extraordinariamente bem, algo que não deve ser desprezado, mesmo quando circulamos numa locomotiva a vapor. Em suma: talvez o leitor considere prematuro termos esta conversa, mas, aqui que ninguém nos ouve, esta decisão de carreira pode muito bem ser o caminho mais curto entre Ruben Amorim e o seu destino inevitável.
Como se as derrotas consecutivas e as explicações de João Pereira não bastassem, os sportinguistas sofreram ainda um novo desaire nas redes sociais. Ruben Amorim decidiu dar uma entrevista à BBC, da qual ninguém ouviu uma coisa que fosse a não ser uma declaração de amor ao Benfica, rapidamente cortada para inundar as redes sociais, que celebraram o regresso de Amorim a casa, pelo menos em espírito. Questionado acerca da sua saída do Benfica, Ruben admitiu que foi muito difícil porque, explicou, «era e ainda é o meu clube.» Bem escreveu Eugénio de Andrade:
«São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.»
Quanta crueldade! Assim, sem mais nem quê? O Mundo Sabe Que isto não se faz, Ruben. São demasiadas derrotas para os sportinguistas em tão pouco tempo. Ainda assim, chamou-me a atenção que ele tenha sentido esta necessidade de explicar, nomeadamente a quem estivesse equivocado, qual continua a ser o seu clube do coração.
Pode parecer que nada o justificaria nesta fase, mas, depois de pensar um pouco no assunto, lá percebi o que se passou. Afinal, bastou a Ruben Amorim ver algumas exibições do bom velho Sporting para rapidamente voltar a si e sentir-se obrigado a esclarecer. Parecia matematicamente impossível até Ruben o conseguir. Se o mundo voltar a mudar e o Sporting se reencontrar, quem sabe ganhando a liga, Amorim pode dar um salto ao Marquês que ninguém na antiga entidade patronal lhe recusará a entrada.
E, apesar de estas últimas semanas me terem divertido bastante, uma retoma do Sporting é perfeitamente possível. Por outro lado, se a vitória sorrir ao Benfica, o mesmo Ruben será recebido pelos adeptos do seu clube como se nunca tivesse saído daqui.
Estranhas voltas que a vida pode vir a dar."
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