Últimas indefectivações

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Obrigado, Chalana!


"Há cerca de quatro décadas, para mim, o Futebol ainda era, nalguns dias, um 'mistério' a preto e branco. Naquele tempo, nós, miúdos lá da rua cujos pais passavam o dia fora de casa a trabalhar para o bem comum familiar, simplificávamos a vida e, no fim de uma manhã de aulas na Primária, permitíamos, privilegiados que éramos, que as nossas tardes se consumissem entre quatro paredes estranhas e sob policiamento, porque o estudo era o farol. Como se tivesse sido ontem, lembro-me com nitidez do dia em que, com os deveres (bem) arrumados em tempo recorde, recebi como prémio um assento numa humildade poltrona de uma sala de persianas cerradas. Era um bilhete para 90 minutos de futebol. Diante de mim, no meio de um retrato pintado pelo rei breu, cintilava o ecrã de uma pequena televisão. Por aquela janela a preto e branco observei um estádio na distante União Soviética e presenciei a capitulação de Portugal, golo após golo sofrido, até aos cinco, aos pés da impante URSS. Que desilusão me esmagou em 27 de Abril de 1983! Ouvira falar de um sonho, da hipótese de um apuramento inédito para um Campeonato da Europa, em França... e, por sorte, esse sonho seria reabilitado em menos de sete meses. Era domingo, 13 de Novembro de 1983. Dia cinzento, invernoso. Nessa tarde, o meu ingresso para 'assistir' no (velho) Estádio da Luz a uma jornada inédita no futebol luso era rijo e mal me cabia na palma de uma mão. 'Fui' à bola de rádio transistor, daqueles que sacudíamos quando se engasgavam porque as pilhas entravam em padecimento. A frequência radiofónica sintonizada é coisa de que não me recordo, mas o relato do rasgo de Fernando Chalana, a arrepiante descrição do raide que rompeu a cortina soviética e resgatou um miraculoso pontapé de penálti, esse é um momento que jamais esquecerei. Imaginei a jogada de serpente e implorei que o batedor não errasse a conversão do castigo máximo oferecido pelo mais talentoso em campo. Baixei o volume, nem queria ouvir... A bola entrou, golo! Portugal ganhava à URSS, fazia-se História, estávamos no França 84! A RTP, em diferido, apressou-se a mostrar-nos o cometimento; na Grundig a cores, lá em casa, passavam os replays e a repetição dos replays da fantástica avenida desenhada pelas fintas do formidável Fernando Chalana, que naquele dia me fez sentir a pátria Portugal pela primeira vez.
Obrigado, Pequeno Genial!"

João Sanches, in O Benfica

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