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quarta-feira, 25 de abril de 2018

Em África - O futebol e a política dos afectos

"É no jornal diário O Público, de 21 de Fevereiro do corrente ano, que deparamos com a fotografia de Miguel A. Lopes, da Agência Lusa, publicada na página de política. Enquanto o texto da jornalista Leonete Botelho descreve os sucessivos passos da visita de Marcelo Rebelo de Sousa e o seu encontro com Patrice Trovoada, ocorrido em São Tomé e Príncipe, a imagem regista de forma eloquente o clima vivido.
No centro da foto, em segundo plano, o olhar recai sobre os representantes políticos das duas nações. Estes encontram-se no espaço exterior, uma rua, um largo, uma praça, não interessa, no meio da população. O facto é que os respectivos representantes dos dois Estados reunidos seguem a pé, lado a lado, ambos envergam traje europeu tal como outros elementos do grupo oficial, rodeados por um banho de gente são tomense. Enquanto no passado, ou ainda hoje em alguns dos outros países africanos e não só, a separação entre os governantes, os visitantes e a população seria bem demarcada por áreas separadas, uma situação justificada por razões de segurança, protocolo, ou disposição definida entre planos distintos.
A distinção entre governantes e governados, entre os representantes mais elevados das duas nações e a população era marcada, em geral no passado, por um palanque, mais elevado e afastado do plano térreo, terreno, comum. Estrados materiais, estratos e níveis sociais diferenciados, adiante, em segunda e outras filas subsequentes, aspectos formais, uniformes e trajes, a vincarem a diferença de funções e de posições dentro da hierarquia do Estado. Ausente, o distanciamento formal entre o Estado e a população e, ainda, o respeito devido nestas ocasiões em que, muitas vezes, os formalismos contribuem até para facilitar as actuações convencionais devidas perante as instituições e os estatutos – aqui essa separação não existe. O peso e a seriedade de cerimónias oficiais não fazem parte deste encontro. Nessa imagem, há abraços, mãos dadas, palavras de amigos trocadas, sorrisos e confiança.
No apinhado de gente, sob a mira do foto-jornalista, o separador metálico colocado à cautela entre uns e outros, é coberto pelos corpos que se misturam, as mãos de Marcelo descontraídas apoiadas nesse ponto tal como, no lado oposto, as da pequena criança negra, de olhos grandes, atenta a esse homem, apoia as mãos, enquanto se concentra na observação do que não entende. Descansados, uns e outros, interesse, entusiasmo, alegria. As expressões entre todos exibem um sorriso, ausente apenas no rosto da criança surpreendida com tanta animação, demasiado pequena para compreender o que se passa à sua volta – demasiado pequena para saber da história. Algo se passa, no entanto, e isso atrai os seus olhos grandes que tudo registam, tudo. Nesse mar de gente, nada é sentido como uma ameaça. Pelo contrário, o ambiente é de verdadeira festa, incontida, espontânea.
A foto reforça o texto. Em primeiro plano, no centro da imagem, de costas, segurando uma bola de futebol nas duas mãos erguidas acima da cabeça, envergando o equipamento do Benfica, um são tomense adulto festeja a presença do Presidente português com vivo entusiasmo e, nesses braços erguidos, enquadra Marcelo num largo abraço. O registo suspende uma imagem fortissima: nesse são tomense não há hesitação e o equipamento é explícito. Percebe-se o sorriso, retribuído por Patrice Trovoada, bom entendedor, o equipamento bem visível: T-shirt, boné de pala e bola de futebol vincam, acima de tudo, deliberadamente, o campo do futebol e, através dele, a profunda identificação com Portugal, a cultura popular portuguesa, esse lugar onde se sobrepõe o inconsciente e o consciente, o presente e o passado, interpenetrados numa identidade comum, uma vida, muitas vidas em comum. Ao vestir, literalmente, a camisola, esse são tomense manifesta através do futebol - o vosso clube é o meu clube, a vossa equipa é a minha equipa, os vossos jogadores são os meus jogadores – traços extraordinários que o futebol em particular vinca, marca a unidade, a pertença, a partilha, o grupo, o nós – a identidade. Nessa perspectiva, a bola de futebol, o equipamento, são elementos que afirmam uma identidade comum, lusa, na qual presente e passado se misturam, se unem, estão unidos, se confundem, foram passado, são presente. E, de cada lado, querem ser e construir um futuro comum.
O desporto, que o futebol representa para grande parte dos portugueses – e representa os portugueses, reúne um tempo delimitado e um espaço circunscrito que jamais se confundem no campo do jogo, no jogo. Desse modo, na disposição de todos os jogadores em oposição, propicia-se a relação inicial definida pelos noventa minutos. Esse é um tempo organizado e racional, o tempo do jogo suspenso numa moldura espaço-temporal que, no entanto, está longe de ficar por aí e, assim, persiste para além do jogo. O que é vivido aí, em conjunto, estende-se a um tempo sem limite, a um espaço infindável, pois as relações estabelecidas entre os jogadores duram para além do jogo em si, como se a tensão vivida nesse tempo partilhado fundisse uns e outros num único corpo, num sentir comum.
E no campo, nesse espaço delimitado onde o confronto decorre sobre o relvado, o jogo atrai o olhar, os adeptos, os espectadores, reúne, regula o encontro, a aproximação, constitui o meio, o processo privilegiado, a amálgama da qual se obtém um conhecimento, um re-conhecimento, uma forma de comunicação imediata e simples, um veículo poderoso de integração. De práticas, de valores, de princípios, de estruturas mais profundas do olhar o mundo, do sentir. Na identificação, afirmada pelo trajar do equipamento de uma equipa portuguesa, manifesta-se uma vida em comum, uma memória, um capital cultural, bem como desportivo, social, económico e humano e, também, um tempo e um passado comum, a preservar, um capital de experiência, o cruzamento de culturas a potenciar.
Nesse equipamento onde não deixa de se exibir a bola sublinha-se, sem recorrer a qualquer palavra, a existência de um jogo que perdura entre uns e outros, a cumplicidade e a unidade de uma equipa de futebol, uma equipa que é transnacional, transcontinental, um corpo físico, emocional e afectivo de onde se mantém apagada a diferença, onde todos os elementos presentes representam, de forma bem visível, aquilo que é comum entre São Tomé e Princípe e Lisboa, entre essa África e essa Europa, uma visão do mundo sustentada em interesses e apoios comuns que o desporto anima, aproxima, proporciona. Para além da língua comum, o que já não é pouco, o encontro registado num disparo de câmara fotográfica de Miguel A. Lopes, é possível hoje por um querer comum, um desejo de construir um caminho a não trilhar isolado e onde também o futebol participa, aproxima e identifica. 
Sobre esse campo de encontros e de possíveis, sobressai o esboço de um futuro que se procura, que se quer construir em comum. Nessa relação – lugar onde o jogo, o futebol, o desporto, vincam a participação e a partilha, manifesta-se a luta por algo, em movimento perpétuo, uma ideia, assente na troca. Sendo assim, através do desporto, futebol e outros, afirma-se a possibilidade de um caminho a consolidar, a entrelaçar, a ligar, a fundar pontes, elementos de permanente valorização mútua, de enriquecimento recíproco. O futuro comum, a fortalecer, a fortalecer-nos, constitui um comércio a preservar, possui um conhecimento de extremo valor, edifica um projecto, a reciprocidade inerente a qualquer equipa onde juntos seremos sempre mais fortes. Nesse campo feito de sofrimento e de esperança, de persistência, jamais de abandono ou de desistência, a política dos afectos não foi deixada em casa.
Pelo contrário, parece ter sido alimento essencial constante num território onde os homens valem pelo seu nome, pela sua idade, pelo seu exemplo – por uma vontade comum, soberana. Um terreno de jogo propiciatório a um devir comum que se procura e se constrói no campo dos afectos, do respeito mútuo em que (numa outra foto) o beijo dado e recebido – trocado – entre a senhora são tomense de trança coberta pelo lenço, outrora portuguesa, e o Presidente português, ainda e para sempre meio moçambicano, enfim gente de cabelo branco, esse beijo afirma e confirma a igualdade entre pares.
As duas fotografias publicadas, no referido jornal diário, a documentar a viagem de Marcelo Rebelo de Sousa a São Tomé e Príncipe, são extraordinárias. A escolha do editor foi excepcionalmente eloquente – um tratado de história."

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