Últimas indefectivações

sexta-feira, 7 de junho de 2019

“Following England by the sound”

"Lá nos Olivais Sul, a malta via o jogo e corria para a rua na experiência iniciática do pontapé de bicicleta, arranhando ombros e cotovelos, e o Luís Cantante estava doutrinado para aplicar centros em curva larga para que, nas nossas grandes áreas de imaginação infinita, chocássemos parietais contra frontais, arriscando a saúde dos supracílios, uns a defender, outros a atacar, horas a fio, em treinos exigentes

“Can you tell me where my country lies?”, perguntavam os Genesis em Selling England by the Pound. Enamorei-me adolescente – e como duram as paixões adolescentes – pelo futebol inglês (e pelos Genesis também), nesses anos em que religiosamente, num sábado de primavera, ao início da tarde, ou melhor, precisamente às 15 horas de Londres, nos sentávamos a ver pela televisão, tão avessa ao então pontapé na bola, a final da Taça de Inglaterra, sem perder sequer aqueles minutos hoje aperreantes dos handshakes entre jogadores enfileirados a meio-campo e um qualquer membro da família real dos Windsor, desde a infeliz princesa Margarida ao trapalhão duque de Edimburgo. Tudo naquele cerimonial era fascinante. E os jogos, frenéticos, rudes, a puxarem pelos músculos e pelos tendões até estalarem, cheios de movimentos abstratos para nós, como cortes de cabeça junto à relva, carrinhos, tackles, pontapés de moinho, remates sem preparação, toques de primeira sem o rodriguinho irritante do domínio, do tricô, da teia de passe e repasse e volta a passar que o portuguesinho adorava, aquele gosto incompreensível pela firula, como se as balizas não existissem ou estivessem tão, tão longe que ninguém se dava ao trabalho de lá ir incomodar o pobre do guarda-redes. Além disso, os cânticos, em uníssono: When The Saints Go Marchin’ In; C’mon Lads, Up We Go!... Lá nos Olivais Sul, a malta via o jogo e corria para a rua na experiência iniciática do pontapé de bicicleta, arranhando ombros e cotovelos, e o Luís Cantante estava doutrinado para aplicar centros em curva larga para que, nas nossas grandes áreas de imaginação infinita, chocássemos parietais contra frontais, arriscando a saúde dos supracílios, uns a defender, outros a atacar, horas a fio, em treinos exigentes que depois púnhamos em prática nos confrontos com os vizinhos do prédio dos militares ou com a equipa do Facadas da Rua Vila de Catió, muitas vezes naquele relvado inclinado e cheio de traiçoeiras tampas de ferro da companhia das águas do Vale do Silêncio onde se fundou um clube famoso chamado Cordeiros do Vale.
Depois andei um pouco por todo o lado, vendo e escrevendo sobre futebol, várias vezes em Inglaterra, mesmo muitas vezes em Inglaterra, de Anfield em Liverpool ao imponente St. James de Newcastle, de Old Trafford a Elland Road, em Leeds, ao City Ground, de Nottingham, e Wembley, sempre Wembley, o inolvidável velho e relho Wembley, encantador como nenhum outro, a cheirar a madeiras e a chá e a cerveja e a urina, centenário Wembley onde me sentei amiúde com a excitação de um catraio, tão diferente deste novo Wembley, assombroso mas igual a todos os demais. Vieram Mundiais e Europeus e arranjei sempre um dia, meia dúzia de horas, para ir ver a Inglaterra jogar num estádio qualquer de um país qualquer, da Coreia do Sul à Ucrânia, e mesmo naqueles em que estive confinado ao meu trabalho de assessor de imprensa da seleção nacional fui bafejado pela fortuna bendita de Portugal enfrentar a Inglaterra em Lisboa (2004) e Gelsenkirchen (2006), pelo nunca fiquei a seco do som inimitável dos adeptos que fazem correr pela espinha do mais impávido um arrepio que vem dos primórdios dos combates entre cavalheiros: “Rule, Britannia! Britannia, rule the waves!”
A última vez que vi a Inglaterra estava em Moscovo, na meia-final do Mundial da Rússia. Tinha a ligeira esperança de os ver numa final, eu que me convenci, depois de ver todos os seus jogos de 1996, que a equipa de Terry Venables, com Gascoigne e Shearer, McManaman e Tony Adams, Anderton e Paul Ince, iria estar numa final em Wembley precisamente 30 anos depois da última e me enganei por um penálti falhado por Southgate. Frente à Croácia esteve quase, mas convenhamos que os croatas eram melhores. Aliás, convenhamos que apesar de todo este meu prazer quase mórbido de andar atrás da seleção dos três leões, nunca tenho esperanças de os ver ganhar seja o que for. Football’s_Coming Home e tal, tudo muito bonito, mas a canção não deixa dúvidas:_“Thirty years of hurt/ Never stopped me dreaming...” E onde já vão esses 30 anos agora, que chove a potes em Guimarães e eu procuro o lugar que me está destinado para ver a Inglaterra outra vez? Transformaram-se em 53."

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