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segunda-feira, 12 de agosto de 2019

O céu e as grandes ambições, excelência

"Trabalhar, treinar, esforçar-se? Não, não, nada disso. Estou só a falar de olhar, ver, observar, contemplar, etc.

Céu e ambição
1. - É preciso olhar para o céu na noite escura, ver as estrelas e o seu brilho e ter ambição.
- Isso, que lindo. As estrelas, o céu. Quase me comove, excelência. Se eu tivesse algum jeito para os sentimentos já estaria aqui com o coração a bater.
- Não exagere. Mas sabe, excelência, gosto muito de olhar para o céu e sonhar com vitórias. Abro um buraco e olho para o céu.
- Como?
- Um buraco, para baixo.
- Eu sei que um buraco é para baixo. Mas abre um buraco para olhar para o céu, porquê? Não entendo.
- Devemos descer o mais possível e daí sim, olhar para o céu.
- Porquê, excelência?
- Vou mudar o tom de voz.
- Mude, excelência, mude de tom de voz.
- Aqui vai. Devemos olhar para o que é alto da posição mais modesta possível.
- Bonito. Uma lição. Vou escrever isso aqui no meu bloco.
- Subir para uma torre e daí olhar para o céu, uma hipótese.
- A primeira.
- A primeira. E, no meu entender, hipótese errada.
- Segunda?
- Segunda hipótese: abrir uma cova, um buraco bem fundo, um poço e daí sim: olhar para o céu.
- De um buraco, o céu fica mais alto. É isso, excelência.
- Sim, podemos fazer as contas.
- Vamos a isso.
- Se uma torre tiver cem metros...
- Sim?
- ... E se virmos o céu daí, o céu fica mais baixo cem metros. Isto tendo como referência o nível do mar.
- Exacto. Estou a apontar.
- E se o céu fica mais baixo cem metros podemos ficar com uma ideia errada da grandiosidade do céu.
- Sim, um erro de 100 metros.
- Não é um erro gigante, mas é um erro.
- Já se vossa excelência vir o céu de um poço de dez metros...
- Dez metros.
- O céu fica mais alto...
- Mais alto 10 metros.
- Exactamente.
- Portanto, a questão é esta: Vossa excelência, quer engrandecer o céu ou tirar-lhe força? É esta a questão.
- Ok.
- Portanto, como dizia a vossa excelência: gosto muito de olhar para o céu e sonhar com vitórias. Abro um buraco e olho para o céu.
- Modéstia: abrir um buraco. Ver de baixo.
- Isso.
- E grandes sonhos: olhar para o céu, para o longínquo.
- Isso mesmo.
- Modéstia e grandes vontades.
- E já começou a trabalhar para alcançar essas grandes vitórias com que sonha quando olha para o céu?
- Trabalhar? Não entendo. Como?
- Trabalhar, treinar, esforçar-se?
- Não, não, nada disso. Estou só a falar de olhar, ver, observar, contemplar, etc.
- Então, excelência? Só olha para o céu? E o resto?
- Penso que houve um mal-entendido.
- Sim?
- Sabe qual é o meu lema, excelência? Vou esclarecê-lo.
- Diga. Estou em pulgas.
- Quer ouvir o meu lema de vida?
- Diga, diga!
- Pois bem, é este: a noite é para dormir, o dia para descansar.
- Como?

A noite e o dia
2. - Que bela expressão!
- A noite é para dormir, o dia para descansar.
- Sim, temos de ser implacáveis.
- Mal acordo começo a logo descansar.
- Sem pausas?
- Sem pausas.
- Abro os olhos e Zás.
- Zás? Zás não é demasiado abrupto, excelência?
- Pois. Não é bem zás. É mais ziuuuuuuuu, assim baixinho.
- Vossa excelência acorda e ziiuuuuuu, começa logo a descansar.
- Sim, exacto. Uma transição brusca mas controlada.
- Com os olhos abertos?
- Semicerrados. Para ver a realidade a metade.
- Metade?
- O dia está à minha frente e eu vejo mais ou menos metade do dia. Fico com os olhos assim, semicerrados.
- Estou a ver, excelência.
- Descansar não é dormir.
- Claro que não. Nada disso.
- A noite é para dormir, o dia para descansar... Por vezes acordo mesmo com uma raiva enorme para descansar.
- Raiva?
- Uma raiva mansa, eu diria, uma raivinha.
- Sim, não exageremos, excelência.
- Mas para mim é claro, sempre foi um ponto de honra: ou fazemos as coisas com vontade ou não fazemos.
- Canalizar, portanto, a vontade do homem para essa actividade de baixo esforço que é o descanso.
- Sim, enquanto a noite não chega.
- Descansar até dormir.
- E dormir até acordar para descansar.
- Uma vida repleta.
- Sim, excelência.

O céu, de novo
3. Ou seja, quando vossa excelência olha para o céu, afinal não vê conquistas futuras...
- Não. Nada... Na verdade, agora já posso ser verdadeiro consigo: quando olho para o céu, de noite fico com sono, e de dia fico cansado.
- Entendo, excelência, entendo perfeitamente."

Gonçalo M. Tavares, in A Bola

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