"Boyé, El Atomico, não gostou de Génova. Vivia com a nostalgia de Buenos Aires. Por isso, pura e simplesmente, fugiu.
Elsa Boyé não era feliz em Itália. Gastava a agulha do gramofone na repetição das músicas que lhe afogavam de lágrimas os olhos negros de baquelite:
«Mi Buenos Aires querido
Cuando yo te vuelva a ver
no habra más penas ni olvido...».
Pena e olvido. A vida de Elsa estava cheia de pena e de olvido. Uma dor cortante, de bisturi, exatamente no lugar onde batia, apressado, o coração. Arritmia, diagnosticaria o médico chamado com frequência inusitada. Podia ter dito saudade, se a palavra existisse em castelhano ou em italiano, mas assim não sendo ficou-se por nostalgia.
«Mi Buenos Aires, tierra florida
Donde mi vida terminare
Bajo tu amparo no hay desengaños
Vuelan los años, se olvida el dolor».
As ruas estreitas de Génova apertavam Elsa como se fossem cordas de nylon, rasgavam-lhe a pele, destruíam a brancura do seu sorriso alvo, perfeitamente medido, amarravam-na ao cais da absoluta tristeza enquanto ela via chegar e partir os barcos que demandam todos os portos menos o da vida não doer, como dizia Pessoa numa carta a Mário de Sá Carneiro.
O casal Boyé habitava uma vivenda espaçosa na Via Malta, mas a continua ausência do marido, Mario Emilio, arrastou Elsa para a fronteira da depressão. Tinha a companhia da sogra e era publicamente nítido que não existia grande simpatia entre ambas. Mario deixava-se, por sua vez, levar pela melancolia da mulher ao ponto de não ser mais El Atomico, alcunha ganha no Barrio de La Boca, quando jogava pelo Boca Juniors em La Bombonera e enlouquecia os hinchas com o seu pontapé assassino que era capaz de fazer a bola viajar a 300 mil quilómetros por segundo, que é a velocidade da luz. A sua chegada a Itália, em 1949, fora bombástica. O Génova, cansado de anos de mediocridade, sentia necessidade de voltar a ser grande. De uma vez só, encomendou três argentinos: Boyé, a estrela, pago a vinte milhões de liras, e Aballay e Alarcon que para pouco mais serviram senão para fazer número.
Mario também era um nostálgico. E tinha medo da nostalgia, daquele buraco que, por vezes, se lhe abria no peito, mais ou menos no lugar onde devia haver uma alma, se ela existisse. Por isso trouxera com ele para a Europa a sua jovem noiva, Elsa, para que juntos pudessem revisitar as lembranças que passavam pela caravana da memória.
Um dia qualquer, pouco importa, Mario e Elsa tinham planeado uma tarde de cinema. Mas, em cima da hora, Boyé foi chamado para um treino supranumerário. A cabeça de Elsa explodiu como uma tempestade numa tarde de Verão. Deixou de ser quem fora até aí, uma mulher recatada, às voltas e às voltas como o disco riscado do gramofone do qual saía a voz de Carlos Gardel:
«Las ventanitas de mis calles de arrabal
Donde sonrie una muchachita en flor
Quiero de nuevo yo volver a contemplar
Aquellos ojos que acarician al mirar».
Elsa, la muchachita en flor, amargou como a folha do cardo. Uma raiva sufocada libertou-se das grades onde a havia fechado e um azedume avinagrado subiu borbulhando até à superfície.
No dia 22 de janeiro de 1950, o Génova foi a Roma ser triturado: 0-3. Boyé não pareceu levar a derrota muito a sério. A cabeça estava longe. Limitara-se a estar em campo, como um cartucho vazio de papel pardo, vogando ao sabor do vento, ignorando a bola tantas vezes sua companheira inseparável. Mais tarde, no hotel onde a equipa estava hospedada, Elsa e a mãe de Mario surgiram carregadas de malas. Boyé, que jogava às cartas com um companheiro, largou o seu jogo sem trunfos sobre a mesa, despediu-se e, juntamente com as duas mulheres, apanhou um táxi em direção ao aeroporto. No Rio de Janeiro, na escala que antecedia o seu destino de Buenos Aires, limitou-se a responder a um jornalista: «Não aguentava mais. Se quiserem mandem-me prender». Em Génova, os credores arrancavam os cabelos de desespero: Elsa deixara dívidas em todas as joalharias e costureiras da cidade.
Na Argentina, o Racing, que estava nas mãos do poder por via do seu presidente, Ramon Cereijo, Ministro das Finanças do governo de Perón, e era treinado pela velha glória Guillermo Stabile, recebeu-o como um príncipe. Para evitar chatices com a FIFA, pagou ao Génova 300 mil pesos com a promessa de um jogo amigável com a receita a caber ao vendedor. Os italianos aceitaram sem reclamar. O golpe da fuga de Mario, montado por Elsa, fora demasiado humilhante e tivera implicações financeiras violentas, além de deixar os adeptos verdadeiramente scattenati.
No dia 16 de fevereiro, o Racing, campeão argentino, desembarcou em Génova para cumprir o jogo amigável que ficara prometido. O estádio encheu. Mendez, avançado do Racing, marcou um golo formidável e o resultado ficou assim: 1-0. Boyé não compareceu. Ficara com Elsa, em Buenos Aires. Foram ao cinema..."
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