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domingo, 13 de outubro de 2019

Do(h)a a quem doer - olhar para 2022 com o exemplo de 2019

"Escrevo estas linhas minutos após o queniano Kipchoge ter corrido a maratona em menos de duas horas, num evento mediático promovido por uma multinacional, com imensas lebres, várias condições externas favoráveis, enfim, um evento mediático a que talvez não possamos chamar desporto. Recordo que Kipchoge não esteve nos Mundiais de atletismo que decorreram em Doha há pouco mais de uma semana precisamente para se preparar para esta façanha histórica - que o é, não haja dúvidas, mas por alguma coisa este tempo não será homologado. Portanto, o incrível atleta queniano preferiu um evento mediático e não competitivo em detrimento do maior palco desportivo mundial da sua modalidade - o Campeonato do Mundo de atletismo.
Muitos defendem que o atletismo está a perder espectadores, interesse dos media e até algum glamour. Usain Bolt conseguiu centrar muitas atenções nos últimos 15 anos e os responsáveis do atletismo mundial talvez tenham recorrido ao jamaicano para sobreviver. Pelo meio, atribuíram a organização de uma prova importante como o Mundial ao Qatar, um país sem tradição neste desporto, com condições climatéricas pouco recomendáveis e uma fama pouco democrática no que toca à vida em sociedade naquele país. Mas, argumentam os responsáveis, é preciso levar o desporto a novos lugares, abrir horizontes, aquele discurso teatralizado e mecânico. De forma a minimizar impactos negativos, a Federação Internacional de Atletismo teve que adiar a realização do evento para final de Setembro, alterando todo o programa de treinos e preparação dos atletas. Já o Qatar, onde aparentemente dinheiro não é problema, tratou de gastar quase uma centena de milhão de euros num ar condicionado no estádio para que o calor sufocante de Doha não provocasse estragos nas prestações dos atletas.
A competição em si até trouxe várias provas com excelentes desempenhos desportivos - lançamento do peso masculino ou 400m femininos, por exemplo - mas não podemos ignorar várias coisas que aconteceram em Doha naqueles 10 dias de competição. As provas fora do estádio - maratonas e marchas - foram angustiantes de se acompanhar. Disputadas ao início da madrugada de Doha, as condições atmosféricas não deram tréguas aos atletas: muitos desistiram e os tempos foram bem abaixo do que aquilo que costumam fazer. Estão a perceber agora Kipchoge? Mais: em Doha, os atletas correram ou marcharam perante ruas compreensivelmente vazias de público, num claro contraste com a prova do queniano em Viena. E se fora do estádio parecia que ninguém ligava àquele esforço heróico dos atletas, dentro do Khalifa Stadium a situação era ligeiramente menos confrangedora. O estádio nunca encheu e na maior parte dos dias os atletas correram, saltaram ou lançaram perante uma moldura humana mínima, calada, parecendo muitas vezes não saber bem o que se estava a passar - a falta de química entre atletas e público era perceptível via televisão. Isto tudo num desporto onde a vertente feminina tem quase tanto peso como a masculina a nível mediático, gerando aquele paradoxo notado por algumas atletas de não se sentirem totalmente confortáveis em competição num país onde elas não podem ser um exemplo para a generalidade das mulheres do Qatar.
O texto vai longo e ainda não falei de futebol. O próximo Mundial de futebol será no Qatar, em 2022, e o calendário também teve que ser modificado para evitar o calor. Outra semelhança com o atletismo é o facto da actual direcção da FIFA não ter sido a responsável directa pela atribuição ao Qatar da organização, mas certamente que Infantino falará com Sebastian Coe para ter lições de como justificar o injustificável. É verdade que o Qatar no futebol está muito mais avançado do que no atletismo - campeões continentais de selecções, vários clubes de elite no continente e muitos estrangeiros de renome a trabalharem no país, alguns deles ficando completamente embevecidos com o funcionamento da sociedade. Mas será justificável organizar o Mundial num país como o Qatar?
A FIFA deveria olhar com atenção para o atletismo. Queremos um Mundial que cumpra todos os requisitos de organização mas que falhe naquilo que ainda vai sendo essencial numa prova como esta, a emoção de a disputar e a simbiose entre adeptos e desportistas?
Para justificar os resultados do CDS nas últimas eleições legislativas em Portugal e a dispersão de votos à direita, Francisco Mendes da Silva mencionou nesta entrevista a "democratização dos fluxos de informação" - no programa Sem Moderação chegou a mesmo a dar o exemplo dos concertos de bandas de música que, quando enchiam grandes palcos portugueses nos anos 90, isso era notícia em quase todos os meios de comunicação social e agora podemos terminar o ano sem dar conta de notícias sobre um Pavilhão Atlântico cheio. Os nichos não existem apenas na música, o futebol também os tem: o nicho dos adeptos românticos e contra o futebol moderno, o dos adeptos que só assistem aos jogos da Liga dos Campeões, o nicho dos adeptos da discussão do fora de jogo, ou o dos adeptos que acham que o futebol de posse é a única forma correcta de jogar este desporto no século XXI. Há de tudo, e ainda bem. Só que o Mundial de Futebol ainda era o evento que aglutinava a grande maioria dos adeptos. Aquelas quatro semanas de futebol de selecções conseguiam captar a atenção seja pelos craques, seja por histórias de países que se apuram pela primeira vez, seja pela descoberta de jogadores até ali irreconhecíveis no nome e na arte de rematar, defender ou fintar. Mas o caminho que está a ser trilhado pelas organizações principais parece ir em sentido contrário à tal confederação dos adeptos de futebol. O primeiro teste será o Europeu de 2020, num formato completamente diferente e capaz de desinteressar a muita gente, tal será a semelhança com mais uma ronda de qualificações. Depois, virá esse tal Mundial no Qatar em 2022 que, e parece não haver retrocesso, será organizado neste país do Golfo Pérsico do(h)a a quem doer. Eu gostava de em 2030 assistir a um Mundial de futebol mediático, bem jogado, com muito público nas bancadas. Temo é que um qualquer concurso organizado por uma multinacional nesse mesmo ano de 2030, convidando as estrelas dessa altura para jogaram uma peladinha a meio campo ou um concurso de bolas na barra, seja vivido com mais entusiasmo pelos adeptos de futebol de 2030."

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