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terça-feira, 23 de outubro de 2018

A noite vibrante dos homens sem descanso

"O Benfica recebeu o América do Rio à luz holofotes. O espectáculo foi grandioso, embora sem golos e com falta de público. Ainda havia o preconceito contra a iluminação artificial nos campos de futebol. Perderam aqueles que ficaram em casa.

O futebol nocturno já era uma realidade mas não uma banalidade. Não admira que, nesse dia 2 de Junho de 1959, pudéssemos ler num período nacional: 'Há quem afiance que o futebol disputado sob luz artificial conduz a uma ilusão de óptica. Todos os movimentos, os dos homens e o da bola, gizados sobre o relvado parecem adquirir uma velocidade invulgar. Na verdade, muitas tem acontecido verificar-se essa ilusão, mas ontem ninguém decerto terá ficado com dúvidas. Houve, de facto, rapidez, acção palpável, ritmo constante e exteriorização de força física e de reflexos'.
Estamos a falar de um jogo amigável entre Benfica e o América do Rio de Janeiro. À noite, pois claro!
O resultado desmentiu, no entanto, todo o festival de ataque oferecido pelas duas equipas.
Perdidas flagrantes, lances contínuos de apuro, momentos cruciantes nos quais Ary e Costa Pereira defenderam as suas balizas como se defendessem a própria vida.
Dizem que José Águas não esteve ao seu verdadeiro nível: se estivesse, não iria para casa sem um ou dois golos no bolsinho do colete.
Faltou, em redor do relvado, uma grande multidão.
Pois é: jogos à noite ainda não eram do hábito dos portugueses.
E a noite foi fantástica, no entanto.
'Este desafio, sem desdouro, alinha ao lado dos mais impressionantes que vimos realizar ao Benfica', contava o cronista. A gente imagina a categoria dos lances interpretados por Alfredo e Palmeiro, Chino e Águas, Santana e Mendes.
Santana: um dos mais injustiçados jogadores que vestiram a camisola encarnada da águia orgulhosa. Uma técnica refinada, uma elegância impressionante, uma formidável apetência pelo golo.
Coluna e Cavém ficaram de fora, por lesão.
O treinador do América era Yustrich, que viria a fazer história no FC Porto.
'Ambos os adversários se equivaleram, alternando nas situações de comando ofensivo, na eficácia e brilho da tarefa defensiva e no espírito da luta no qual teve amplo cabimento e serenidade de certos choques que raro se caracterizam pela deslealdade ou pela intenção malévola',
Foi tão a sério esse amigável!

Uma pepita de ouro
jogos assim: ninguém se recorda deles e, apesar de tudo, foram fantásticos. É preciso descobri-los em imagens velhas, em páginas de jornais amarelecidos pelo tempo, trazê-los à superfícies como pepitas de ouro que não se desvalorizam apesar do esquecimento.
O Benfica - América foi um deles.
'Noventa minutos decorridos em ritmo alucinante, sem uma trégua, um momento de ociosidade ou retardamento da manobra para recuperar energias esbanjadas a rodos. Carregou-se num hipotético botão e jamais se lhe tirou o dedo de cima. Um tratado de aplicação, do pundonor e de explanação de futebol moderno, de ataque e de defesa, o que é rato ver-se num ciclo em que predomina a preocupação das tácticas defensivas. Se o virtuosismo táctico dos brasileiros não ofereceu dúvidas de uma manifesta superioridade (homens elásticos que sabem acariciar a bola), não deixou de ser um prazer constatar-se a capacidade do Benfica, alicerçada numa alma gigantesca, e que em vários trechos não ficou a perder no encontro'.
Que dizia eu? Basta fechar os olhos e imaginar o corre-corre dos jogadores sobre a relva, golpe e contra-golpe, bola perdida e bola ganha, um nunca mais acabar de lances divididos, exigindo do físico, dos músculos e das articulações.
Quem ficou em casa ficou a perder.
Por duas ou três vezes, em gestos emocionantes, os encarnados estiveram à beira da vitória. Águas, o cavalheiro do golo de costas viradas para ele. Abanou a cabeça. Sentiu os erros.
Um tiro de Mendes, a trinta metros: um defesa (Amaro?) que desvia para canto.
A arte de Lucio e Leônidas absorve palmas admirativas.
Alfredo ergue-se numa imensidão de cortar o fôlego: o centro do terreno é dele.
Espera-se o golo a qualquer momento.
A espera estende-se a todo o comprimento dos minutos. Um a um escorrendo na ampulheta do tempo até aos 90.
Ninguém sai frustrado de um espectáculo vibrante que provoca sobressaltos atrás de sobressaltos e exclamações de espanto em uníssono.
Talvez nenhum mereça vencer. Mas merecem ambos ficar presos na parede branca da casa da memória."

Afonso de Melo, in O Benfica

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