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quarta-feira, 15 de novembro de 2017

O método hermenêutico do desporto

"O convite que recebi da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FL/UC) de proferir uma conferência, no passado dia 7 de Novembro, aos professores e alunos, sem exclusão dos doutorandos, do departamento de Filosofia e, finda a minha palestra, a proposta que me foi apresentada pelo Prof. Luís Umbelino (professor de Antropologia Filosófica) de leccionar um curso, em Fevereiro ou Março próximos, sobre “Filosofia da Motricidade Humana”, nesta mesma Faculdade, significou, para mim, uma honra que não poderei esquecer. A FL/UC conta, na sua história, com um friso ilustre de Mestres, que reuniam à coragem na defesa das suas convicções éticas e políticas o fundamento inapagável da cultura. António Garcia Ribeiro de Vasconcelos, Mendes dos Remédios, Carolina Michaelis de Vasconcelos, Joaquim de Carvalho, Gonçalves Cerejeira, Paiva Boléo, Costa Pimpão, Herculano de Carvalho, Sílvio Lima, Miranda Barbosa, Miguel Batista Pereira e tantos mais que, neste momento, não me ocorrem, foram universitários de incansável operosidade, mas de forte vigor pedagógico e científico. O Vitorino Nemésio (meu professor da disciplina de “Cultura Portuguesa”, no quarto ano da licenciatura) foi aluno em Coimbra, mas professor em Lisboa, sob proposta de Hernâni Cidade (deixo aqui, à memória do Prof. Nemésio, a flor recolhida de uma saudade). O Prof. Luís Umbelino ofereceu-me o texto da sua tese de doutoramento, que dá pelo nome de Somatologia Subjectiva: A percepção de si e Corpo em Maine de Biran (1766-1824). Luís Umbelino nasceu em Coimbra, vive em Coimbra e é professor auxiliar da FL/UC, mas binando, como professor convidado, na Faculdade de Ciências do Desporto da mesma universidade. É um jovem: quarenta anos, se tanto. Homem dotado de superior inteligência crítica e de um espírito que, infatigavelmente, não cessa de interrogar-se, a sua tese de doutoramento é, no meu pensar, um inesperado encontro de novos rumos, para a filosofia…
“Os filósofos parecem ignorar como o os homens são feitos, não conhecem o que eles comem, as casas que habitam, os fatos que usam, o modo como morrem, as mulheres que amam, o trabalho que fazem (…). Esta espantosa ignorância não perturba o curso preguiçoso da filosofia. Os filósofos não se sentem atraídos pela terra, são mais rápidos do que os anjos, não sentem qualquer preocupação com os vivos que amamos e nunca os tomou uma grande vontade de caminhar no meio de homens” (Paul Nizan, Les Chiens de Garde, Maspéro, p. 30). Considero “insensata” esta mania de fazer do filósofo um metafísico, indiferente ao “aqui e agora” de uma determinada vivência. A filosofia se, também ela, não reflecte e projecta um contexto cultural, um tempo, uma sociedade - para que serve? Julgo que deverá ter-se em conta a distinção entre filosofia e filosofar: a filosofia não tem pátria, pertence a todo o homem (ou mulher) que pensa, questiona e se questiona; filosofar, sim, tem pátria, tem escola e tem uma língua própria. No meu entender de “aprendiz da filosofia”, uma língua encontra-se inextrincavelmente associada a uma determinada mundividência, serve à compreensão de um tema, de uma problemática, sob nova luz, sob diferente forma de comunicar. Filósofos foram Platão e Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, Descartes e Espinosa, Locke e Rousseau, Kant e Hegel, Marx e Nietzsche, Sartre e Merleau-Ponty (e mais nomes poderia lembrar) e ninguém os pode acusar de uma luta obsidiante por qualquer assomo de “nefelibatismo”. Maine de Biran, que o Prof. Luís Umbelino traduziu (e pensou) para a língua portuguesa, já muito antes de nós recusou o dualismo antropológico racionalista e adiantou que o “facto interior” é ainda um facto e não uma ilusão.
Segundo o Prof. Luís Umbelino, “Biran reconhece o papel do corpo na génese da consciência” (p. 25). E diz ainda o autor desta tese, verdadeiramente inesperada: “uma somatologia, uma investigação da presença do corpo, em cada modo de existir, é bem, para BIran, o centro do estudo do propriamente humano do homem numa ciência do homem” (p. 29). Há duzentos anos, já Maine de Biran, sem poder beneficiar do desenvolvimento científico do nosso tempo, se aproximava do “eu sou meu corpo” de Merleau-Ponty e do nosso Vergílio Ferreira. E portanto já é antiga a interrogação: as ciências humanas podem construir-se recorrendo unicamente às ciências de paradigma físico-matemático? Recordo uma conferência que produzi, na Universidade Católica do Chile, sobre a Ciência da Motricidade Humana (CMH), observada como ciência hermenêutico-humana e o problema que me foi colocado por um doutorando: “não é verdade que o senhor professor, quando fala da CMH é mais subjectivo do que objectivo?”. Respondi-lhe como pude: “Mesmo que lhe respondesse em termos rigorosamente físico-matemáticos, a minha resposta seria sempre mais subjectiva do que objectiva, porque foi a minha subjectividade que a produziu. No entanto, não julgo ser de um subjectivismo pateta ao acrescentar que, porque a CMH é da motricidade humana de que se ocupa, são nela inevitáveis as referências a princípios, a valores, a objectivos e portanto um gesto desportivo jamais poderá estudar-se ao jeito das características de um objecto físico ou material”. E, se bem me lembro, disse-lhe ainda: “Aos fenómenos humanos não é lícito reduzi-los aos fenómenos mais elementares de natureza física. Uma verdadeira explicação da motricidade humana precisa de números, mas não se resolve com números tão-só”.
Eu sei que, à luz do critério metodológico explicação-compreensão, é difícil reconhecer estatuto científico às ciências humanas. Mas são simples coisas os fenómenos humanos? A vida humana (o Desporto é uma actividade humana) constituem-na razões, emoções e situações objectivas. António Damásio não esconde, desde o seu primeiro livro, O erro de Descartes, que “a emoção é uma componente integral da maquinaria da razão” e que portanto não há uma razão pura, porque não há razão sem emoção, sem sentimentos. A afectividade e a racionalidade são interatuantes e apresentam o mesmo suporte biológico. Mas, para mim (e assim penso, desde que me “apaixonei” pela epistemologia da motricidade humana) há necessidade inadiável de um “método compreensivo”, susceptível de revelar por que o “cogito ergo sum” de Descartes não pode definir, nem a heroicidade de um militar, nem os espantosos desempenhos de um campeão. Um método onde o natural se confunde com o integralmente humano e onde a linguagem se transforme no objecto fundamental da sua reflexão, da sua investigação. E que entende os dados científicos, a literatura, a arte, a filosofia, como “práticas significantes”. Por que no futebol há mais do que futebol e é a cultura (a aliança do saber e da vida) que atesta a cientificidade do que se faz. Mas que o humano nunca desapareça dos objectivos que se perseguem nem dos caminhos que se trilham. Deus morreu? O Homem morreu? Não pode morrer nada que dá sentido à vida, que dá sentido ao desporto. Sim, é verdade que cada época tem a sua “episteme”, a sua linguagem, as suas infra-estruturas de trabalho produtivo. Mas o Homem não sei se continua igual, mas continua vivo, com toda a certeza…
Se bem penso, dá-se demasiada importância à táctica. Ela é necessária, mas não é o elemento mais importante. Com as tácticas mais sofisticadas, mas sem Cristiano Ronaldo, a selecção portuguesa de futebol não chegaria, com toda a certeza, à fase final do Mundial da Rússia. Todos os jogadores são necessários, mas não há grandes equipas, sem um jogador genial. Está próximo o tempo em que perceberemos finalmente que não é de futebol que se fala, quando se fala de futebol. Porque não há futebol, há homens que praticam futebol. Não são as táticas que fazem golos… são homens!"

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