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sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

O perigo de se ser maior que o próprio desporto


"Há dias, em conversa online, um dos membros desta nossa/vossa casa, falava de “deserto, pubs e xadrez”, assim seguido, que parece uma tríade pouco comum, mas era o que naquele momento dominava a página de abertura da Tribuna Expresso. Quem se queixa que a semana entre o Natal e o final do ano é uma espécie de vazio cósmico não podia estar mais errado: há os primeiros roncos da preparação do Dakar, o absolutamente louco Mundial de dardos entra na fase decisiva e este ano jogou-se também o Mundial de rápidas e relâmpago de xadrez, com final no derradeiro dia de 2024.
O fim de ano coaduna-se mais com a festa e os figurões do povo que marcham no Alexandra Palace de Londres para disputar, nadando dentro de muita cerveja, o Mundial de dardos - este ano com vencedor adolescente e amante de fast food -, mas não consigo deixar de pensar em Magnus Carlsen. Ou em xadrez. Que tenha escrito primeiro o nome do campeão norueguês antes da modalidade que pratica não foi por acaso.
Não se pode dizer que o xadrez seja uma modalidade mainstream. Mas é mais popular do que nunca. E muito se deve a Magnus Carlsen. Em tempos idos, o xadrez era mais sinónimo de metáforas para lutas geopolíticas, de gente engravatada horas a fio em frente a um tabuleiro, campeões austeros, alguns talvez um pouco loucos, mas sempre cinzentos. Magnus Carlsen baralhou essas contas. Ninguém estaria à espera que o melhor jogador de xadrez a dado momento da história (em termos de rating, o melhor de sempre) fosse um adepto fervoroso do Real Madrid (já deu até o pontapé de saída de um jogo dos merengues), que fizesse campanhas fotográficas para marcas de roupa, aparecesse num episódio dos “Simpsons” ou tivesse tido um convite para participar num filme de J.J. Abrams (não concretizado apenas por motivos burocráticos), isto enquanto enverga uma cabeleira indomável por qualquer pente. Mas assim é Magnus Carlsen. E o xadrez tornou-se sexy again (ou pela primeira vez) muito por causa dele.
Mas quando é que uma criatura se torna mais poderosa que o seu criador? E isso é necessariamente bom? Na última semana do ano, o xadrez foi notícia por duas razões. Primeiro, Magnus Carlsen levou a mal que a organização do Mundial não o deixasse jogar de calças de ganga e por isso abandonou a competição de rápidas. De facto, 2024 já não é exatamente tempo para se insistir em códigos de vestimenta rígidos, nem mesmo no tradicional xadrez. Por outro lado, Carlsen sabia as regras antes de entrar em jogo, conhece-as há anos e anos, aliás, e só se queixou depois.
Mas, reconhecendo o mofo da regra (e, inconscientemente, o medo de perder o seu porquinho mealheiro), a FIDE, federação internacional de xadrez, mudou-a, fazendo a vontade ao grande mestre, que voltou para a competição de blitz.
E então vamos para a razão número 2. A final do Mundial de blitz encontrava-se num impasse, com Magnus Carlsen e Ian Nepomniachtchi empatados. O norueguês, superestrela de um desporto pouco habituado a gente tão colorida, considerado um dos homens mais sexy do mundo pela revista “Cosmopolitan” em 2013, propôs que o título fosse repartido. Estava cansado e não queria jogar mais, disse. A FIDE, mais uma vez, anuiu à vontade do seu jogador-bandeira, mesmo que os regulamentos possibilitem outras formas de deslindar um vencedor.
Pareceu altruísta por parte de alguém a quem não faltam recordes, mas é bem capaz de ter sido só uma jogada de poder. Afinal de contas, quem manda mais: o xadrezista ou a instituição que gere o xadrez?
A reflexão serve para o xadrez como para qualquer outro desporto. Ou instituição. Ou empresa. Carlsen, que colocou milhares de pessoas a jogar xadrez, que investiu somas consideráveis em aplicações online que espalharam a modalidade pelo mundo durante a pandemia e que tem um mérito incomensurável por isso, também usa o desporto para as suas birras pessoais, como acusar sem provas um adversário de batota (uma guerra que deverá, em breve, resultar num filme produzido por Emma Stone), recusar-se a disputar o título mundial a não ser contra determinados adversários e, agora, desviar a atenção da competição para os seus pequenos braços de ferro.
Certo é que, no final de 2024 e inícios de 2025, falou-se de xadrez. Mas falou-se mesmo de xadrez? O que seria se tal acontecesse com outros desportos mais populares? Se Novak Djokovic decidisse que não queria jogar mais de branco em Wimbledon? Pode acontecer, um dia, quem sabe. Pelo sim, pelo não, mais vale nenhum desporto estar nas mãos de apenas um alguém."

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