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terça-feira, 4 de outubro de 2022

Não, não é normal, nem nunca poderá ser


"Para não andarmos às turras como modo de vida, porque toda a pessoa tem punhos cerráveis, pernas pontapeáveis e liberdade para se render à batatada, é elementar lembrar como, há muito, nos regemos por uma imensidão de pactos sociais que tacitamente aceitamos para não sermos mais uma espécie na natureza onde a lei do mais forte prevaleça, em que a força física ou a astúcia no conflito sejam distintivos-mor entre pessoas como o são entre os animais dos quais orgulhosamente nos distinguimos. Um desses contratos para amigável e graciosamente vivermos em sociedade são as posições hierarquicamente superiores.
Mas, depois, por não sermos humanóides nem seres ligados à corrente a operarem entre zeros e uns, há pessoas cujas lunetas da interpretação do cargo que ocupam estão embaciadas e, como tal, são falíveis na confusão que fazem com uma função de maior responsabilidade: ocupá-la não é sinónimo de ser merecedor automático de respeito, de agir como lhe apetecer, de poder falar da forma que pretender, de dizer o que quiser. De se acharem no direito de pedirem, exigindo, ou de sugerirem na brincadeira, falando a sério. O problema-berço de umas pessoas mandarem noutras em qualquer organização é de o cargo de responsabilidade não ser um apagador de defeitos.
Miguel Afonso, de 40 anos, é o treinador suspenso de funções no Famalicão, alvo de processo disciplinar da parte da Federação Portuguesa de Futebol e tem o nome em denúncias que chegaram à Polícia Judiciária porque, quando ainda era o técnico do Rio Ave, trocou mensagens com jogadoras a pedir-lhes fotografias que comprovassem a sua forma física “em segredo”, por ter “mais piada”, a sondá-las pela opinião que tinham da sua voz “sem tabus nem vergonhas” e a dizer que a voz de uma delas “tem qualquer coisa, juntamente à forma como” o tratava. No final da semana passada, várias dessas futebolistas, que têm entre 18 e 20 anos, uniram-se para vocalizar uma queixa de assédio sexual contra ele.
Treinar uma equipa de futebol implica desenhar treinos, preparar ciclos de trabalho, planear épocas, gerir motivações e demais tarefas que redundam nas táticas e no escolher quem joga, tarefas que são as mais visíveis para quem assiste de fora. Das funções não faz parte, de todo, pedir a uma jogadora para “mostrar que não tem vergonha” e dar “um elogio direto” com a salvaguarda de “o que falamos fica entre nós”. No futebol ainda imperam os homens, no jogado por mulheres existem muitos e as abordagens do dito técnico lidas em várias mensagens divulgadas em público exemplificam alguém a usufruir da hierarquia que o tem no mais superior dos cargos numa equipa.
Desde as primeiras horas em que se viram os excertos de mensagens, logo saíram da caverna outras vozes, mais australopitecas, a questionarem o porquê de as jogadoras em causa responderem, de serem um interlocutor para quem parte do privilégio de estar mais acima da escadaria do poder para ter com elas conversas que, fossem eles desconhecidos, provavelmente o deixariam a teclar para um vazio. Estas são futebolistas atrás de uma carreira, do praticar o que gostam, de jogarem, e isso condiciona quando do outro lado está a pessoa a quem compete tomar decisões que ditam se elas o podem fazer.
E não, não é normal, seja no futebol ou fora dele, qualquer pessoa num cargo de chefia promover conversas deste cariz ao ponto de levar várias futebolistas a acusarem-no de assédio sexual. Nem deveriam ser reais as notícias de o presidente e diretor técnico do Famalicão terem sido informados das denúncias - que reportam à época 2020/21, quando Miguel Afonso estava no Rio Ave - no dia da apresentação do treinador, no início de setembro, e, no final do mês, o clube alegar que “não tem conhecimento de nenhuma acusação”, nem tinha “no momento da contratação do técnico”.
Quem ordena o clube suspendeu de funções o treinador apenas quando as jogadoras recorreram à plataforma de denúncia da Federação Portuguesa de Futebol e, automaticamente, o Conselho de Disciplina da entidade instaurou um processo a Miguel Afonso, enviando as denúncias para as autoridades. O mesmo fez com Samuel Costa, o diretor-desportivo, peça seguinte do dominó que parece estar a ruir. Outros pedaços se terão de seguir agora. “Jamais podemos ficar caladas. Se não nos pronunciarmos sobre este assunto, sabendo e tendo conhecimento dos factos, também estamos a fazer parte desta triste história”, escreveu Jéssica Silva, no Twitter.
Haver uma das jogadoras de destaque do Benfica e da seleção nacional e, talvez, a mais renomeada no estrangeiro, a tomar uma posição acerca do tema, dá-lhe tração onde qualquer queixa, causa, movimento, o que seja, precisa ter eco para essas ondas forçarem a mão de quem mora nos cargos com poder para tal - na perceção pública. E nos jornais, noticiários televisivos e secções de desporto lidas e vistas, sobretudo, por cabeças masculinas, essas vozes são ainda mais necessárias. “Peço, acima de tudo, que não estraguem o nosso sonho. Estes casos são absolutamente reprováveis. Vergonhosos. Coragem para todas as que viveram algo assim. E não se esqueçam: não estão sozinhas”, acrescentou a futebolista com 92 jogos feitos pela seleção.
O facto de, clicando numa das mensagens deixadas por Jéssica Silva na rede social que pouco filtra e nada protege contra desvantajados mentais, ter aparecido um cavernoso ser que escreveu “as mulheres é na cozinha ou na cama, deixem o futebol para quem sabe”, só prova ainda mais a vulnerabilidade das mulheres a que no desporto, e na vida, surjam estas mentes em cargos hierarquicamente superiores a elas. Mas que, mentalmente, nem se apercebem o quão inferiores são."

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