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segunda-feira, 8 de junho de 2020

«A frustração de não jogar fez bem a Bernardo Silva»

"É uma das maiores referências do futebol de formação em Portugal e no estrangeiro, não tivesse ele treinado os escalões jovens do Benfica durante quase 19 anos. Nesta entrevista de vida, João Tralhão partilha connosco a experiência e os ensinamentos de quem trata a profissão de treinador por “tu”, entrando ao detalhe para falar de jogadores como Rui Costa, Fàbregas, Bernardo Silva ou João Félix. Afirma até que este último pode valer mais do que aquilo que custou ao Atlético de Madrid. De discurso metódico e assertivo, características que também identificam o seu estilo como treinador, João Tralhão dá-nos uma autêntica masterclass sobre a sua profissão, e revela ainda o que procura no próximo desafio profissional.
– O desafio de treinar Rui Costa e Fàbregas –

Tens uma fotografia no teu perfil no Twitter que diz “I’ve always been of the opinion that the most important thing to do is the right thing”. A coisa certa é sempre a mais difícil?
Depende da perspectiva. Eu acho que a coisa certa é sempre a mais fácil para mim, porque eu tomo decisões conforme aquilo que sinto, e, quando tomo uma decisão, acredito que é a melhor decisão.

Quem são as tuas referências enquanto treinador?
Houve um treinador que me marcou bastante, porque coincidiu com o meu começo a treinar, que foi o José Mourinho. Na altura em que me apaixonei por esta profissão, o José Mourinho tinha “rebentado” aqui em Portugal, com a vinda para o Benfica. Não só pela qualidade dele, mas sobretudo pela mudança que operou no futebol português. Depois, treinadores mais recentes… tenho vários. Gosto muito do Maurizio Sarri, sobretudo das épocas que fez no Nápoles, gosto muito de Pep Guardiola pela filosofia que tem de vida e de jogo. Identifico-me com estes três treinadores de elite. Depois, não tão mediáticos, mas também de elite, identifico-me com vários pessoas com quem trabalhei. Destaco o Luís Tralhão, o meu irmão.

Já tiveste a oportunidade de dizer ao José Mourinho que ele era uma das tuas referências?
[risos] Olha, as únicas vezes que estive com o Mourinho foi sempre em alturas que implicavam conversas muito rápidas. A primeira vez que estive com ele foi quando nos cruzámos na Gala das Quinas de Ouro. Foi nos bastidores, eu tinha ganho o prémio de Melhor Treinador do Ano na Formação.

Foi em 2018? Quando ganhaste o segundo título de campeão nacional de juniores?
[João hesita] Ah… É provável, sim. Sim, foi as Quinas de Ouro de 2018, exactamente. Ele tinha recebido o troféu Vasco da Gama, porque tinha expandido os treinadores portugueses para o mundo. Foi recebê-lo, e, ali nos bastidores, cruzámo-nos e falámos um bocado. Mas não tive oportunidade de lhe dizer isso [risos]. As outras vezes que me cruzei com ele foi em trabalho. Mas ainda não surgiu a oportunidade. Um dia espero poder-lhe dizer isso.

Qual foi o jogador que mais te impressionou na primeira vez que o viste?
[João nem hesita] Foi o Rui Costa. Já era fã dele enquanto adepto de futebol. Já era fã de jogadores como o Rui Costa, Figo, Nuno Gomes… grandes jogadores.

Temos isso em comum então. Disseste três dos meus jogadores preferidos de sempre.
Exacto. Outro, João Pinto no Sporting e no Benfica. Eu cresci a ver esses grandes jogadores portugueses, e depois, quando tive oportunidade de treinar o Rui no último ano dele…

Com o Chalana, não é? Depois da saída do Camacho
Exactamente. Fiquei totalmente impressionado pela positiva com o carácter dele e com a forma dele jogar. Era muito diferente de qualquer jogador. Na minha visão, o Rui foi um dos melhores jogadores de sempre.

Treinar um jogador como o Rui Costa, ainda por cima na fase final da carreira… como treinador, sentes que ainda há algo que lhe podes ensinar?
Sim, eu acho que o desafio com esse tipo de jogadores, que são completamente diferenciados, são de outro nível. É criar-lhes condições para que eles se sintam ainda motivados para aprender. Quando eu digo motivar para aprender, não quer dizer que o Rui não tivesse essa humildade! Mas são jogadores com uma experiência tão grande, e são tão competentes ao longo de tanto tempo, que dificilmente a percepção que têm é de que alguém lhes pode trazer algo de novo. Por isso, treiná-los é criar um ambiente em que eles possam sentir que estão a crescer ainda. Eu tive essa experiência não só com o Rui, mas também com outros tantos jogadores. Mais recentemente, no caso do Monaco – um excelente jogador, já era fã dele, e depois quando tive oportunidade de trabalhar com ele…

Acho que sei quem é. Fàbregas?
Certo. Quando trabalhas com um jogador desses, o desafio é sentires que lhes estás a oferecer qualquer coisa de novo e criar-lhes condições para que se sinta motivado para continuar a crescer.

Tens um feito interessante no currículo. Não é toda a gente que pode dizer que deu uma nega ao Thierry Henry…
[João abre um sorriso] Não é bem assim…

Eu sei que já tinham trabalhado juntos no AS Monaco e tiraram dois níveis do curso de treinador juntos. O que te quero perguntar é se a família está sempre no centro das tuas decisões?
Sim. Não me orgulho nada em ter… aliás, isso até é algo que me deixa bastante triste. Sou amigo do Thierry e sou um grande admirador dele, não só pelo grande jogador que foi, um dos melhores de todos os tempos, mas sobretudo como pessoa. Identifico-me muito com ele como pessoa, e fiquei bastante triste por não poder ir com ele por razões pessoais. Continuamos amigos e continuamos em contacto, o que me deixa o mais orgulhoso possível. Em relação às decisões, sou uma pessoa de família e as minhas decisões são sempre em função daquilo que eu achar que é o melhor para a minha família.

Um treinador às vezes é um pai?
Sim, é sempre. Um treinador é sempre pai [risos]. Eu acho que ser treinador é uma responsabilidade grande, porque não só tens de dar o exemplo, como também guiar os jogadores para aquilo que é o melhor caminho. Se fizeres o paralelo com o pai, acho que é igual.

É mais difícil ser pai ou treinador?
Ambos! [João solta uma gargalhada forte] Têm ambos particularidades muito próximas, como é óbvio, mas ser treinador e ser pai é entusiasmante.

Ao veres um jogador que te passou pelas “mãos” na formação a brilhar uns anos mais tarde, sentes um bocadinho o orgulho de um pai que vê o filho ser bem sucedido?
Sim, é esse o sentimento. Mais do que tudo, quando recordo a relação que tive com os jovens que estão a ter agora enorme sucesso, o meu maior orgulho não foram os feitos, os títulos e por aí fora. Foi o facto de poder ter contribuído, de alguma forma, para que eles pudessem concretizar o sonho deles. E agora vê-los a jogar ao mais alto nível… brilham-me os olhos sempre que vejo um jogo deles.

– O “clique” de Bernardo Silva –
Numa entrevista recente, recomendaste a Autobiografia do Sir Alex Ferguson. Coincidência, acabei de a ler há uma semana
[João ri-se com gosto] Espectáculo.

É dos melhores livros que já li, um autêntico manual de liderança. Sir Alex diz no livro que as estrelas com grandes egos não eram o problema que as pessoas achavam que era, porque elas precisam de vencer para massajar o seu próprio ego. Por isso, eles faziam o que fosse preciso para ganhar, ou seja, trabalhavam arduamente de forma consistente. Quem foram os jogadores que treinaste que foram o melhor exemplo disto?
Ao nível sénior, já te disse. Eu acho que isso é uma característica comum. E quem melhor que Sir Alex Ferguson para relatar esse tipo de relação e para explicar o que isso significa? A nível sénior, tive vários exemplos. O Rui Costa, o Luisão, o Di María, o Nuno Gomes. Depois, no Monaco, jogadores como o Falcao, Fàbregas, Youri Tielemans. Tielemans era jogador fabuloso a nível de caráter, queria ganhar sempre. O Rony Lopes também tem o mesmo perfil, já me tinha cruzado com ele no Benfica.

E na formação?
Muitos. Destaco aqueles que são mais recentes. Casos do João Félix, Bernardo Silva, Gonçalo Guedes, Renato Sanches, Diogo Gonçalves, Rúben Dias. Com jogadores que têm essa necessidade de ganhar não precisas de fazer muito. São egos já, mesmo na formação, bastante… Não dando um sentido pejorativo ao termo ego, quando digo ego são jovens que já acreditam nas suas capacidades, e têm tanta coisa à volta deles que aquilo de facto é comum a todos. Felizmente, durante a minha carreira, encontrei muitos jovens na formação com esse perfil. Destaquei alguns, mas havia muitos.

Outra lição deste livro, que é sobre Psicologia e a relação treinador-jogador. Sir Alex Ferguson diz que é fulcral dizer sempre a verdade, dividindo o feedback ao jogador entre crítica e encorajamento. Ou seja, fazê-lo tomar responsabilidade pelo seu desempenho, mas, ao mesmo tempo, dar a entender que ele consegue estar a um nível superior ao actual. É desta forma que procuras dar feedback aos teus jogadores?
Sim. Na generalidade, há duas formas de criticares. Há uma que é a crítica por criticar, gratuita, e acho que qualquer pessoa, sobretudo no futebol, pode fazê-lo. Tanto aquele que sabe mais, como aquele que sabe menos, seja da área ou não. Mas aquilo que faz a diferença é a outra forma. Quando tu criticas, e concordo com esse capítulo… lembro-me de quando estive a fazer passagem pelo capítulo, e identifico-me na plenitude! Quando tu criticas, tens de ter noção que essa crítica é para te levar a algo.

Ou seja, com a postura de aprendizagem, de quem está a fazer um caminho.
Sim, tens de ter um sentido projetivo. Criticar por criticar nunca leva a lado nenhum. Só se for uma coisa extremamente negativa, e mesmo que seja uma coisa extremamente negativa e fora daquilo que é o normal, eu acho que deves sempre dar oportunidade de o jogador se poder retratar e poder melhorar. Quando é uma crítica técnica sobre aquilo que ele faz no jogo, só tem sentido criticares num sentido projetivo. E, aí sim, vem a fase do encorajamento, e também a parte do desafio. Ou seja, criticas e crias um desafio novo – já o estás a encorajar a ser melhor.

Sentes que, hoje em dia, já se mudou um pouco o paradigma de que na formação só jogam os mais altos ou os mais fortes?
Ainda não, não totalmente. Um projecto de formação é tu teres um caminho, ou seja, saberes exactamente o que é que pretendes dos jovens que estás a formar. Tendo um caminho, tu consegues, à partida, definir quais são as qualidades que queres e não queres num jovem, e não andar sempre a recorrer a outro tipo de qualidades que não te vão permitir alcançares um objectivo. Acho que há espaço para todos. Há vários projectos, muito diferenciados, que têm sucesso. Não é só com pequenos e tecnicamente evoluídos que tens sucesso. Há projectos com jogadores mais altos e fisicamente mais fortes que também têm sucesso. Mas o que é importante, para mim, é definir o caminho do processo para não teres o erro de teres uma heterogeneidade muito grande de jogadores. Pelo menos de perfil, características gerais, e que não te deixam tomar boas decisões naquilo que é o mais importante na formação, que é ajudar os jovens a alcançar um determinado objectivo.

Falávamos de jogadores fisicamente fortes e altos. Pergunto-te agora por alguém que, fisicamente, é o oposto disso. O que é que recordas dos tempos do Bernardo Silva na formação?
Tenho excelentes recordações. Foi um menino que, quando chegou aos juniores, tinha passado por uma fase de alguma frustração por não ter sido tão regularmente utilizado. Essa frustração foi fundamental para ele perceber como era, de facto, a passagem do futebol de formação para um contexto mais profissional. Nos juniores, já é profissional, é diferente… fez-lhe bem essa frustração! E fez-lhe melhor ainda a resistência a essa frustração, ou seja, aquilo que ele teve de fazer para combater isso. Mérito dele, totalmente.

Houve um esforço da vossa parte para lhe proporcionar um ambiente que promovesse esse amadurecimento da parte dele?
Sim, ele encontrou um ambiente para trabalhar que promoveu esse tipo de sentimento e esse tipo de acção da parte dele. Mas o mérito é dele. Dou-lhe ainda mais valor por isso. Foi ele que percebeu que tinha de mudar. Foi ele que trabalhou para mudar, e mudou muito a mentalidade, relativamente àquilo que era o futebol. Ele já era um miúdo super apaixonado pelo jogo, tinha qualidades inacreditáveis para um jovem daquela idade, mas faltava-lhe ainda ter a atitude certa para vingar no futebol profissional. Foi isso que ele fez, foi o clique que ele deu. Quando ele deu esse clique… nem preciso de falar, basta ir ver os registos e os vídeos que estão na Internet para perceber que tipo de jogador é que ele é. É um jogador completamente diferenciado de todos os outros da fornada dele. Neste momento, é um dos melhores do mundo.

– A memória mais feliz do futebol –
O que é que falta ao Benfica para conseguir segurar as jovens promessas um período de duas ou três épocas na equipa principal?
Não me sinto no direito de explicar o que é que está a faltar, seja no Benfica ou em que sítio for – apesar de obviamente conhecer a realidade do Benfica, porque trabalhei lá muitos anos. O poder económico dos clubes portugueses ainda não é equiparável ao poder económico – e se calhar nunca vai ser – das principais ligas europeias. Mesmo com os jovens jogadores, os valores que se praticam nessas ligas são incomparavelmente superiores àquilo que se pratica em Portugal. Na minha perspectiva, não é só o caso do Benfica. É para todos os clubes portugueses.

Luís Filipe Vieira disse esta semana, em entrevista à BTV, que, para o famoso “projeto europeu”, é preciso o clube ter uma base formada no Seixal. Achas que isto é realista?
Eu acho que o Presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, já tem demonstrado ao longo do tempo que as suas convicções, a maioria ou mesmo a quase totalidade, têm sido materializadas. Nós estamos a tentar interpretar aquilo que o Presidente do Benfica disse. O que eu acredito é que, quando tens um projecto de formação sólido, consistente, com o caminho bem definido e com capacidade de estares a formar 3/4 jogadores por ano que consigam entrar no futebol profissional de forma sólida… Eu acho que é um bom indicador para que se perceba que nos próximos anos é possível parte do plantel ser formado por jogadores da formação.

Que memórias é que tens do dia em que te sagras campeão de juniores em 2013?
[João suspira] Uish… É das memórias mais felizes que tenho no futebol, porque foi um ano muito duro. Foi o ano em que eu estava ainda a afirmar-me enquanto treinador de juniores. Era o meu segundo ano de treinador principal de juniores, e, no ano anterior, tínhamos ficado muito próximos de ser campeões nacionais. Não fomos por um detalhe, e, nesse ano, eu coloquei na minha cabeça que nós tínhamos de ser campeões no ano seguinte. Obviamente que não era esse o meu objectivo principal. Quando és treinador principal dos juniores de um clube como o Benfica, o objectivo principal é ajudares os jogadores a crescer. Mas na minha mente, eu queria ajudar o clube a ganhar esse título tão desejado, e ia fazer tudo para criar as melhores condições para aqueles miúdos poderem ganhar aquele título.

Qual é o sentimento quando o árbitro apita para o final do último jogo?
Foi um sentimento de satisfação, quando ganhamos. Lembro-me perfeitamente do dia. Fomos a Vila do Conde no último jogo, a precisar de ganhar num contexto difícil, com muito vento, num campo difícil, contra o Rio Ave, que era uma boa equipa. Só poderia haver um resultado possível, que era a nossa vitória. Quando o árbitro apitou para fechar o jogo, o sentimento que tive foi… nem sei bem, corri que nem um louco e agarrei-me às pessoas que mais satisfação me deu agarrar – o staff e os jogadores. Foi um sentimento de grande felicidade, talvez um dos mais importantes, senão o mais importante, até hoje da minha carreira.

Qual das finais da UEFA Youth League doeu mais perder?
As duas. Doeu mas à posteriori. Senti que, enquanto treinador, cresci muito com o sentimento de resistir a essa frustração. Na primeira final, senti que fomos melhores do que o Barcelona, e o resultado é completamente…

Enganador.
Sim, completamente enganador e desajustado por tudo aquilo que aconteceu no jogo. Aí tive uma frustração muito grande, apesar de nunca ter criado expetactivas sobre nós podermos ir tão longe, porque nós não conhecíamos a competição. Íamos jogo a jogo, e tivemos um momento em que sentimos que podemos ganhar a competição: foi quando eliminamos o Manchester City, em Inglaterra. Depois na meia-final, com o Real Madrid…

Atropelam o Real Madrid.
[João volta a abrir um sorriso] Sim, atropelamos o Real, que era uma grande equipa. Nós fomos mais felizes nessa tarde. Depois, quando chegamos à final, eu tinha a convicção de que o Barcelona era uma equipa que fugia um bocadinho ao padrão do que eram as últimas equipas do Barcelona… eram equipas mais técnicas, equipas mais jovens. Mas, naquele ano, não.

Naquele ano, o Barcelona faz um “all-in”.
Sim, apostam tudo para ganhar a competição, tinham muitos jogadores provenientes de outras origens que não Espanha – apesar de serem excelentes jogadores, como o Adama Traoré, o Munir, o Kaptoum, ou seja, tinham um perfil um bocado diferente, mas perfeitamente preparados para ganhar a competição. Uma equipa maturada. Mas nós fomos melhores do que eles, fomos muito melhores do que eles. Tivemos muito mais ocasiões de golo do que eles, falhámos um penalty… mas, nesse jogo, eles foram mais felizes e venceram a competição. Eu e a minha equipa ficámos muito frustrados, mas isso ajudou-nos a crescer.

Na segunda final, contra o RB Salzburg, havia maior favoristimo?
Sendo justo, apesar de ter sido um jogo equilibrado, o Red Bull tinha, de longe, a equipa mais preparada para vencer a competição. Eles tiveram um trajecto muito difícil de bater: eliminaram Manchester City, Paris SG, Atlético de Madrid e Barcelona. Mas nós acreditámos que podíamos ganhar. A nossa equipa era ainda muito jovem, esta geração que está agora a “rebentar”: João Félix, Gedson, Florentino, Rúben Dias, José Gomes, Jota… a grande maioria eram juniores de primeiro ano. Nós equilibrámos em muitos momentos do jogo, mas eu acho que eles depois justificaram a vitória, porque nos momentos decisivos foram mais fortes.

– O real valor de João Félix –
Como é que uma pessoa que pretendia ser professor de educação física acaba por se tornar treinador?
Dou-te a mesma resposta que dei a mim mesmo quando tive de fazer essa opção. Quando tive de optar, jogava futebol a um nível médio-baixo, ali num patamar semiprofissional quase a cair para o amador [risos]. Tive de tomar a decisão de ir estudar ou continuar a jogar futebol. Não tive grandes dúvidas: queria estudar. Queria estar ligado ao desporto, queria ensinar. E o meu primeiro instinto foi ser professor de educação física. Estudei na FMH, só que, antes de ir para lá, tinha estado um ano em Rio Maior, a estudar futebol. Tinha ficado apaixonado pelo treino. Depois, quando entrei para a FMH, dei continuidade a isso.

Nessa fase, querias mais ser professor ou treinador?
Numa fase inicial, eu queria ser professor de educação física e dar treinos. Depois, começou a ser inversamente proporcional, já queria ser treinador e, de vez em quando, dar umas aulas para ganhar um dinheiro a mais. Depois a vida de treinador possibilitou alcançar esse grande objectivo que era só treinar. Isto não foi nada planeado. Foi surgindo naturalmente, porque sempre segui a minha paixão pelas coisas, e a minha paixão pelo treino revelou aquilo que eu tinha mais vocação para fazer. Apesar de gostar de ensinar, eu gosto de ensinar aquilo que é a minha grande paixão: o futebol.

Apoiavas algum clube quando eras mais novo?
Na minha casa, éramos todos de clubes diferentes. Eu habituei-me sempre a ser respeitador. Apesar de ser adepto de um clube, sempre respeitei tudo. O meu pai sempre me levou a mim, ao meu irmão e à minha mãe a ver jogos de vários clubes, sobretudo as finais da Taça de Portugal. Íamos sempre ao Jamor, quaisquer que fossem as equipas que estivessem a jogar. Eu sempre gostei de ver futebol, sempre fui um adepto de futebol. Quando era mais novo, fui adepto fervoroso de um clube e, à medida que a idade foi avançando e eu fui ganhando uma vida profissional ligada ao futebol, comecei a ter uma visão muito profissional. Apesar de ter a minha preferência, neste momento sou um treinador profissional.

Mas o clube que apoiavas era um clube de Lisboa?
[João ri-se com gosto] Era um clube de Portugal. Acho que isso não é importante. Para um treinador profissional, acho que esse tipo de pergunta é sempre melhor ficar no seu íntimo. Como te disse, tenha a minha preferência, mas essa preferência guardo para mim. Vejo o futebol como uma paixão e numa perspectiva de treinador, porque essa é a minha profissão.

No seu discurso introdutório, quando assumiu a equipa B do FC Barcelona, Pep Guardiola disse que dar o nosso máximo, ao mesmo tempo em que competimos com dignidade, é uma vitória, seja qual for o resultado. Sentes que esta filosofia se aplica sobretudo aos escalões de formação? Desenvolvimento/maturação acima dos resultados?
Sim, acho que sim. O resultado é sempre a consequência do processo. Quando tu tentas alcançar um resultado e não tens os pilares de um processo sólido… isso é perigoso para um projecto de formação. Acredito que os resultados vão ser sempre a consequência da qualidade dos pilares que tu criares.Se criares os pilares de ambição, cultura de vitória, mentalidade competitiva, de visão daquilo que é o longo e o médio prazo, de desenvolvimento das qualidades associadas ao jogo e ao treino, acabas por alcançar a vitória. Acabas sempre por conquistar qualquer coisa. Eu continuo a achar convictamente que o jogo de futebol é um jogo para ganhar, é uma competição. Quando estás dentro de uma competição, eu não acredito que consigas formar jogadores que não tenham a mentalidade competitiva e a ambição de querer ganhar os desafios. Ou seja, ser melhor no treino, ser melhor naquele exercício, ser melhor no jogo, vencer o adversário. Isso, para mim, está sempre associado. É impossível dissociar.

É incompatível formar sem incutir uma mentalidade competitiva?
Quando pensas que podes formar sem incutir essa mentalidade, eu acho que não estás a formar jogadores de futebol. Estás apenas a formar indivíduos que têm algumas qualidades relativamente ao jogo, mas fica a faltar ali qualquer coisa. Isso pode ser o erro de Descartes, e eu acredito, que neste enquadramento, sobretudo quando estamos a falar de clubes de elite como o Barcelona, o Benfica, o Porto, o Sporting, etc, tens de incutir uma mentalidade competitiva, vencedora. Se não, os jogadores, apesar de poderem ser competentes, não conseguem ser competitivos nem jogar ao mais alto nível. 

Como é que um treinador da formação gere o excesso de pressão que os pais por vezes colocam sobre os seus filhos?
Tem de fazer aquilo que é a sua responsabilidade: criar as condições todas à volta do jovem para que ele se possa desenvolver. E as condições estão relacionadas com o treino, a liderança e a gestão que fazem da vida dele, nunca esquecendo que os pais têm um papel fundamental. Os pais nunca podem ser excluídos do processo, têm de ser incluídos. Agora, a forma como fazem essa inclusão é que depende muito do clube onde trabalhas e da estrutura que tens.

Como deve ser essa estrutura?
O ideal será os treinadores terem o menor contacto com os pais e haver alguém responsável que faça essa ligação entre o treinador, a criança e os pais. Mas a grande parte das estruturas em Portugal não tem isso. Se tiver de ser o treinador a fazer esse papel, eu acho que deve evitar ser exclusivo. Excluir os pais não tem sentido. Os pais fazem parte do processo. Ser inclusivo é a melhor estratégia para que os pais tenham a consciência de que não vão influenciar aquilo que são as decisões técnicas do treinador, mas que podem e devem influenciar aquilo que são as questões sociais.

Com base em que critérios é que escolhes o capitão?
Em juniores, que é o meu grande know-how, eu acho que é um contexto praticamente profissional. Deves antecipar o cenário que vais encontrar nos seniores. Eu costumo definir dois tipos de capitão: o capitão de tarefa e o capitão daquela liderança mais clássica, de ser o exemplo do grupo e ter uma voz mais activa. Na maioria das vezes, eu não gosto de escolher um capitão, gosto de escolher um grupo de capitães.

Um grupo multidisciplinar?
Sim. Tens líderes de tarefa, que são aqueles que, em determinado momento dentro do campo, têm de reajustar a tarefa dos colegas. Isto porque o treinador não tem acesso à equipa para passar a informação. Então, neste contexto, com o barulho das bancadas, eles não conseguem ouvir-me. Por isso, os líderes de tarefa são fundamentais. Devem ser a voz do treinador dentro de campo, a voz que toda a gente respeita. Depois, aqueles líderes mais clássicos que incentivam, dão uma palavra, são o exemplo para os colegas, devem ser a voz do treinador dentro do balneário. Eu acho que depende sempre do grupo que tiveres. Se tiveres por base estas duas ideias, facilitas um bocado a decisão.

Quais são os princípios de jogo base que gostas de aplicar às tuas equipas?
São princípios relacionados com a minha ideia de jogo. Eu gosto de dominar, controlar o jogo, praticar um tipo de futebol de posse de bola e que não dê grande iniciativa ao adversário. Portanto, todos estes princípios estão associados a essa ideia de jogo. Estes princípios estão estruturados por momentos do jogo, por fases.

João Félix valia os 120 milhões de euros que custou?
Eu acho que pode valer bem mais até. Se nós olharmos para os valores de mercado… os valores estão loucos, mas ajustados àquilo que se pratica. O João é um miúdo que, em breve, será uma das maiores referências do futebol mundial. Sem entrar em comparações, mas se ele tiver a felicidade, que eu espero que tenha, e se continuar o seu trajecto como tem sido até aqui, vai ser dos grandes jogadores do futebol mundial nos próximos tempos.

– AS Monaco e o futuro –
Tendo em conta esta pandemia que estamos a enfrentar, na tua opinião, vai haver mais espaço para os jovens da formação aparecerem nas equipas seniores, uma vez que os clubes vão perder poder de compra?
Sim, acho que, inevitavelmente, isso vai ter que acontecer. Não tem a ver com a questão da pandemia. Infelizmente, esta pandemia veio e obrigou-nos a procurar recriar outra vez todas as áreas de actividade, incluindo o futebol. Como é que tu, com menos recursos financeiros, consegues ter os mesmos resultados, ou até melhores? Só vejo uma fórmula para lá chegar. Aliás, vejo algumas, mas uma delas é, de facto, apostar na formação, porque é daí que pode surgir o investimento. Eu acho que a comparação entre o investimento e o retorno é gigante. Se fizeres muito investimento na formação, e se apostares numa visão a médio-longo prazo, eu acho que o resultado que vais ter disso não te vai obrigar a gastar… ou a teres um investimento muito grande em jogadores provenientes de fora. Podes recorrer aos jogadores que estão na formação. Mas, para isso, tens de ter um bom projecto na formação, estruturado e com ideias, com um caminho e com tempo.

Qual foi o maior desafio no AS Monaco?
Foi desafiar as minhas qualidades e as minhas vivências da experiência que eu tinha tido como treinador, até então. Aceitei, em grande parte, por ter sido convidado por um grande amigo e uma pessoa que eu acreditei que iria ser um grande treinador no futuro. A outra parte foi o benefício que eu podia ter pela experiência. Neste caso, foi desafiar-me, foi ir para um contexto para o qual eu sentia que já estava preparado – o futebol sénior. Ainda mais, o desafio também passava por tentar perceber quais eram as minhas limitações para me poder afirmar naquele contexto. Felizmente, esse desafio foi muito produtivo para mim, as reflexões que fiz foram todas positivas. Tive o “desgosto” das coisas não terem corrido melhor e de não podermos ter tido mais tempo para ficar, mas, por outro lado, tive a certeza de que o meu perfil estava enquadrado naquele nível, e que é nesse mesmo nível que eu quero estar.

Como é que era o estilo de liderança do Thierry Henry?
O Thierry foi um dos melhores jogadores do mundo de sempre. Portanto, para chegares lá, tens de ser muito exigente contigo, tens de ser uma pessoa que quer alcançar os limites sempre. Ele tem essa característica. É uma pessoa exigente, que não admite que à volta dele não deem o máximo para atingir os limites. Quando tens um treinador com este perfil, é mais fácil teres equipas com uma mentalidade forte e capaz de poder atingir os limites.

Porque é que só ficaste uma época?
O Monaco só tinha sentido com o Thierry, naquela fase. O Thierry levou-me para lá, acreditou nas minhas capacidades, confiou e confia em mim. Não tinha sentido existir um projeto Monaco sem Thierry.

Estás mais inclinado para voltar a trabalhar na formação ou ao nível sénior?
É uma questão de desafio. O próximo clube tem de me desafiar. O próximo projecto vai ter de me desafiar, e, como sabes, foram 18 anos e meio na formação. E eu tenho a convicção de que o meu perfil adapta-se neste momento ao contexto sénior. É aí que eu quero continuar a crescer e a trabalhar, porque sei bem onde quero chegar.

Qual a melhor lição que o futebol te ensinou?
Ensinou-me a continuar a ser igual a mim próprio. Nos valores que tu tens, seja no futebol ou em qualquer outra área, é importante continuares a ser genuíno e autêntico. Quando tu te tentas desviar dos teus valores enquanto pessoa, não vais ter sucesso em lado nenhum. E eu acredito que os meus valores, a minha educação e todo o investimento que faço na profissão vão-me ajudar a atingir o nível que eu quero, mas sobretudo a ter impacto nas pessoas com quem trabalho.

– Passes curtos –
Qual o melhor momento da tua carreira?
O campeonato de juniores em 2013.

Um estádio?
Estádio Nacional.

Qual o golo que mais celebraste?
[João ri-se a bom rir] O que mais celebrei… foi o golo contra o Real Madrid, na meia final da Youth League, em 2017.

Golo do Félix ou do Jota?
O do JP, foi o 4-2.

Se te dessem à escolha para, na próxima época, seres adjunto do Jurgen Klopp ou do Pep Guardiola, qual escolhias?
Esta deixa-me a cabeça em água, porque são duas grandes referências. Não te consigo dizer com certezas, dependia muito das coisas, mas a resposta é: ficava muito indeciso…

Dava-te em que pensar.
A resposta é mesmo essa, dava."

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