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terça-feira, 17 de março de 2020

Lumiar, Setembro de 1993: o dia em que (,,,) levou um soco em cheio no nariz

"Lumiar, Setembro de 1993.
Tinha 20 anos de idade e era árbitro, há dois anos, nos distritais da AF Lisboa. O jogo, de seniores, foi na "casa" do CD Charneca (do Lumiar), colectividade que entretanto extinguiu-se em 2005.
O adversário foi o Recreativo Águias da Musgueira, um histórico de Lisboa que ainda hoje transpira vitalidade.
Meus amigos, foi rasgadinho.
Lembro-me que o pelado era "engolido" pelas bancadas, dispostas de uma forma atípica. Parecia uma espécie de arena de toiros, em que, dentro das quatro linhas, todos se sentiam algo vulneráveis. Expostos. Mas a verdade é, naquele dia, o perigo não veio dali, dos adeptos.
O relógio marcava 85, 86 minutos de jogo. Na sequência de um pontapé de canto e sem que nada o fizesse prever, um jogador da equipa visitada correu na minha direcção e, do nada, deu-me um soco na cara.
Aliás, aquilo não foi bem um soco. Foi mais um sopapo de mão fechada, meio desajeitado, que acertou no olho, nariz e bochecha. Ali pelo meio.
Não sei se têm essa noção, mas na vida real os socos são diferentes daquilo que vemos no cinema. Não há aquela perfeição técnica ou aquele efeito devastador. Não há estética nem glamour. Há um gesto abrutalhado, seco, rude. Força bruta soprada por um impulso irracional.
Não caí, não sangrei, não fiquei KO. Não desmaiei, não chorei, não rebolei no chão. Fiquei de pé, meio desequilibrado, surpreendido e dorido.
Reparei logo que o rapazito não tinha ficado satisfeito com o desfecho épico da coisa, porque voltou à carga. Antes que pudesse repetir a gracinha, afastei-me. Dei uns passos atrás e levantei a perna, num movimento ainda mais desengonçado do que o murro que levei.
Num ápice, estava toda a gente à nossa volta: jogadores, treinadores e dirigentes. Os meus colegas, miúdos como eu, puseram-se à minha frente, formando uma espécie de colete à prova de balas. Foi um gesto incrível, que ainda hoje me emociona. É que também eles estavam com medo que aquilo descambasse... no entanto, não hesitaram. Não pensaram duas vezes.
A força de uma verdadeira equipa é insuperável, de facto.
O jogo acabou ali, obviamente. Quando chegámos ao balneário, lembro-me de pensar: "Acabou! Acabou mesmo! Não quero mais isto para mim".
A decisão imediata nada teve a ver com o soco, em si, mas com a reflexão imediata que ele suscitou: senti-me revoltado e magoado. Senti-me culpado. Senti-me humilhado.
Reparem, era apenas um miúdo. Um miúdo que podia estar em qualquer outro lado, a fazer aquilo que os miúdos faziam naquelas idades: sair com amigos, passear com a namorada, estar com a família, descansar...
Mas a parte pior, a parte realmente catastrófica, nem foi essa. A parte pior foi saber que, naquela manhã (vá se lá saber porquê) tinha insistido muito para que a minha mãe fosse ver aquele jogo. E ela... foi.
Imaginem a angústia. Imaginem a preocupação, a dor e sensação de impotência. Dos dois.
Como em tudo na vida, o tempo acabou por ser bom conselheiro. Esfriei, distanciei-me de emoções mais fortes, serenei. Reflecti.
Ouvi o apelo sincero de muitos colegas e amigos, escutei a voz da razão, pesei prós e contras e... continuei. Continuei porque houve, na altura, quem me fizesse ver algo importante: quando nós desistimos, eles ganham.
Foi, sem dúvida, a melhor e mais acertada decisão que tomei na vida. Tive que passar por um momento-limite para chegar lá, para valorizar as pessoas que estavam comigo, para perceber que há coisas que dão trabalho a conquistar, para entender que é preciso muita resiliência para se chegar onde se quer, porque nada de valioso surge sem luta, sem dedicação, sem sacrifício.
Nada na vida é fácil, nem a vida em si, mas há duas coisas que são imbatíveis: esperança e coragem. Quem as tem... tem tudo o que precisa.
Nesta fase, é só disso que precisamos."

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