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quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Paulo Gonçalves é tudo quanto sei sobre a moral e as obrigações dos homens

"A fazer fé de que o carácter de alguém se revela na adversidade, não haverá paisagem mais propensa à provação do que o deserto.
Na zona de conforto, muito bons somos nós, dando-nos ao luxo até de poder parecer magnânimos. Mas naquele expoente de solidão e vulnerabilidade, não.
Mais do que de uma entrevista, há uns anos, em que foi afável e disponível, como sempre era para quem o abordava, de Paulo Gonçalves recordo o dia 10 de Janeiro de 2012.
Quando Cyril Despres ficou atolado num lamaçal, Paulo esqueceu a corrida e voltou atrás para ajudar o colega. Assim que desatascou, o piloto francês acelerou a fundo, deixando o português com a moto enterrada na lama e abandonado à sua sorte.
A lição aprendida nessa etapa, que lhe custou 15 minutos de atraso, não lhe acicataria o cinismo. E quatro anos depois, quando liderava a prova, Paulo voltou a parar para assistir um colega. Dessa vez, o austríaco Matthias Walkner, vítima de uma queda aparatosa. O gesto fê-lo perder dez minutos até à chegada da equipa médica; e ganhar, meses depois, um prémio de ética no desporto.
Fair-play será um termo curto para definir aquilo que, no fundo, é integridade.
Num mundo desportivo repleto de estrelas egocêntricas, o «Speedy Gonçalves», esposendense de Gemeses, era um «working class hero» capaz dos mais belos gestos de altruísmo, mesmo quando envolvido na competição mais feroz.
Não há título mundial de todo-o-terreno ou pódio no Dakar que se sobreponha à conquista maior de ser exemplo. De ter um legado que se sobrepõe ao palmarés.
Chamem-lhe ética ou camaradagem, código de conduta ou lealdade.
Dizia Albert Camus: «Tudo quanto sei com maior certeza sobre a moral e as obrigações dos homens devo-o ao futebol.»
Tivesse o Nobel da Literatura franco-argelino visto estes audazes que cruzam as areias do Sahara ou do Atacama sobre rodas e seria ainda mais enfático na afirmação.
No passado sábado, foi Toby Price a parar. Fê-lo ao quilómetro 263 da etapa entre Riade e Wadi Al Dawasir.
«Cheguei a uma pequena duna e vi um piloto caído. Era o Paulo», recordou o australiano.
O vencedor da última edição do Dakar aguardou pela chegada da equipa médica e ajudou a transportar o corpo do colega até ao helicóptero. Só depois seguiu. Percorreu 250 quilómetros na sua moto e chegou à meta «desidratado de tanto chorar».
Sem ter imediata consciência disso, Toby terá feito a maior das homenagens a Paulo Gonçalves. 
Seguiu-lhe o exemplo. Aprendeu também com ele tudo o que é preciso saber sobre a moral e as obrigações dos homens."

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