"As nossas recordações mais antigas têm o efeito perverso de criar uma ilusão de eternidade em relação a fenómenos circunstanciais e passageiros. Para quem, como eu, nasceu no final da década de 70, a figura do Papa confunde-se com João Paulo II de tal forma que, ainda hoje, até eu que não sou católico, vejo aqueles que o sucederam como meros funcionários da Igreja, para não dizer usurpadores, apesar de todo o mistério eclesiástico dos enclaves e o ritual sagrado do fumo branco.
Chegamos ao mundo e o mundo tal como o vemos parece ter existido assim desde sempre. Quem seria capaz de me convencer, aos nove anos, que aquele curioso partido da balança estaria condenado a um rápido desaparecimento ou que era possível substituir os gelados da Olá por razões comerciais? À pequena escala do meu mundo, como é que eu poderia adivinhar que o Bazar Namibe, explorado pelo Sr. Ivo com as suas longas barbas brancas de Pai Natal e onde se vendiam carrinhos de brincar, estalinhos e cigarros avulsos, viria a fechar um dia? Como não conhecíamos o princípio das coisas julgávamos que não teriam um fim, que toda a realidade era inquestionável e imutável como os dias da semana, os meses e as estações do ano.
Alguém disse um dia que é entre os sete e os dez anos que somos mais fanáticos por futebol, que nessas idades se define o nosso amor por um clube e se estabelece uma lealdade que, em circunstâncias normais, perdura para o resto da vida. Ora, a primeira final da Taça de Portugal de que me lembro é a de 1985, em que o Benfica venceu o Futebol Clube do Porto por 3-1. Recordo-me não de ter visto o jogo, mas de ter ouvido o relato na rádio. Curiosamente, não me lembrava dos autores dos golos do Benfica, mas sabia que o golo do Porto tinha sido marcado por Paulo Futre.
Nos dois anos seguintes, o Benfica voltou a conquistar a Taça. A de 1987 está tão viva na minha memória como se tivesse sido ontem. Lembro-me de, nesse domingo, ter feito um bolo de amêndoa com a minha mãe, lembro-me dos golos de Diamantino, sobretudo do golo de livre, e lembro-me de, pela primeira vez, ter ouvido essa palavra mágica, a “dobradinha”. Eu não poderia saber, mas essa foi a última vez em que o Benfica conquistou a taça em anos consecutivos. Também me recordo bem da final de 89 contra o Belenenses e da desilusão amarga pelo fantástico golo de Juanico. E como esquecer a final de 93 contra o Boavista com um Benfica de sonho a caminhar para o abismo e uma exibição imperial de Futre, o mesmo que tinha marcado aquele longínquo golo na primeira final de que me recordo?
Nessa altura, marcado pelas primeiras recordações, eu ainda acreditava que uma final da Taça só era a sério quando o Benfica chegava ao Jamor e que as outras, como a de 90 entre os “pequenos” Estrela da Amadora e Farense ou a de 91, em que festejei o golo insuficiente do egípcio Abdel-Ghany contra o Porto, eram acidentes cósmicos, falhas momentâneas na organização do universo e que seriam corrigidas assim que o Benfica voltasse a garantir o lugar que eu lhe julgava devido na grande festa da bola. Como eu estava enganado! Como eu era ingénuo! A partir daí, chegar ao Jamor passou a ser uma epopeia e uma improbabilidade. Para piorar tudo, a anteceder uma seca de finais de oito anos, houve aquela vitória triste contra o Sporting, marcada pela morte de um adepto, naquele que foi o momento mais baixo e mais vergonhoso do futebol português.
Mas – e é esta a força das primeiras recordações – nem as desilusões dos anos seguintes, nem a maturidade que as mesmas significaram, apagaram a convicção de que uma final no Jamor só é a sério quando o Benfica chega lá. No sábado, sentado num bar em Aveiro a assistir ao jogo, vi logo que faltava ali alguma coisa. Estavam duas equipas, árbitro, adeptos, Presidente da República e outros dignitários. Pelo que pude ver, até havia uma bola em campo (bastante maltratada, diga-se). Os sportinguistas, com uma esperança cautelosa, desejavam concluir uma época com dois troféus pela primeira vez em mais de dez anos. Os portistas viam na Taça o magro consolo de uma época que, como dizem os judeus sobre a tentação, foi doce no início e amarga no fim.
Para mim, claro, faltava lá o Benfica. Ganhar o campeonato e não estar no último jogo do ano é como acabar um curso e não receber o diploma. É aquela sensação de nos termos esquecido de alguma coisa quando saímos de casa. Por isso, um dos momentos mais tristes em qualquer época, independentemente do que se faz no campeonato ou nas competições europeias, é quando se fica com a certeza de que não estaremos no Jamor. A partir daí, sabemos que caberá a outros a honra de encerrar a época e resta-nos, à laia de consolo, a alegria perversa de rejubilarmos com a derrota de um rival, quando se enfrentam os outros grandes, ou com o triunfo de um David, como aconteceu no ano passado.
Ao ver outras equipas a entrar no relvado naquele estádio o meu coração afunda-se em tristeza. E dói mais por ser no Jamor. Se, como alguns defendem, a final se realizasse num desses estádios anódinos em Aveiro ou no Algarve, não me custaria tanto. Era como se a Taça não fosse bem a mesma Taça, a Taça das minhas primeiras recordações. Haverá bons e maus motivos para mudar a final de estádio, mas a mim custa-me conceber outro cenário para a festa. É o cenário, amigos, aquele cenário, que dota a final de uma dimensão épica, que empresta a um Estrela da Amadora-Farense, a um Sporting-Leixões, a um Porto-Beira-Mar ou a um Benfica-Vitória de Setúbal, um sopro de grandeza intemporal. É como jogar nas ruínas do Coliseu de Roma ou representar o Rei Édipo no teatro romano de Mérida.
Quanto ao jogo, dizem que o Porto foi superior e que o Sporting ganhou nos penáltis, o que não deve ter surpreendido ninguém. No final, Sérgio Conceição recusou-se a cumprimentar o presidente do Sporting, em mais uma demonstração azeda de mau perder, que alguns defendem com o fraco argumento de que o treinador do Porto não é hipócrita, que ele é mesmo assim. Já escrevi aqui que um pouco de mau perder é saudável e não fica mal a ninguém. Porém, a ostensiva recusa em cumprimentar o adversário é sempre censurável, por muito injusta que seja uma derrota. Desculpar o comportamento de Sérgio Conceição com o “ele é mesmo assim” faz-me lembrar uma velhinha crónica de Miguel Esteves Cardoso intitulada “Assim”. Escrevia o cronista sobre o hábito, ainda hoje em vigor, de os futebolistas justificarem tudo o que acontecia em campo com a inviolável afirmação de que “o futebol é mesmo assim.” Esse hábito futebolístico ter-se-ia estendido a outros domínios da vida portuguesa: “Este romance é incompreensível, mas a literatura é mesmo assim” ou “o bacalhau espiritual sabia a peúgos de nylon embebidos em gasolina mas, em última análise, quem ganha é a gastronomia, porque a alta culinária é mesmo assim.” Já todos sabemos que Sérgio Conceição é “mesmo assim”, o que não invalida que a sua reiterada azia e falta de desportivismo tenham o distinto sabor a peúgos de nylon embebidos em gasolina. É mesmo assim e quem perde é Conceição. Outra vez."
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