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quarta-feira, 11 de abril de 2018

Da legitimidade para falar

"O mal está em tudo o que gira em torno da bagunça interna que enche o nosso quotidiano

Não gosto de repisar verdades tristes e realidades deprimentes, mas se essas existem, se são diárias e actuais, não há como escapar a essa constatação. E a verdade é que, por muito positiva que uma pessoa seja, por muito que tente orientar o discurso apenas para a solução, não há sorriso que resista a um contexto tão feio e degradante como aquele a que continuamos a assistir no mundo do futebol em Portugal.
O jornal A Bola e outros canais informativos concedem-me, nesta fase da minha vida, o privilégio de usufruir de um espaço onde tenho liberdade para opinar e exprimir o que penso e sinto em relação ao que quero. Não aproveitar esse enquadramento seria trair a minha essência e tudo aquilo em que verdadeiramente acredito. Já me disseram várias vezes que devia assobiar para o lado. Que seria mais inteligente da minha parte. Mais sensato e razoável. Já me disseram até que devia cingir-me ao meu know how técnico e ficar-me pelos penálties, amarelos e vermelhos. Não sei se é assim que os outros me veem (e se é, a culpa é minha) ou se é apenas um conselho acobardado de quem não me conhece. O que sei é que não contem comigo para estar e silenciar. Para ver e calar. No dia que a etapa futebol se esgotar na minha vida, outra nascerá. E o que já existe para além dele é muito, é importante e é suficiente.
Quero acreditar pois que conquistei a legitimidade de falar. Conquistei-a porque dediquei quase três décadas ao futebol português. Conquistei-a porque representei o meu país mais de uma centena de vezes além-fronteiras. Conquistei-a porque calcei botas e sujei equipamentos mais de duas mil vezes em toda a carreira. Conquistei-a porque pisei muitos relvados, de muitos estádios, em muitas cidades. Conquistei-a porque grande parte da minha vida foi dedicada ao futebol. Permitam-me pois deduzir (com alguma vaidade) que tenho tanto direito à opinião como qualquer outra pessoa que tenha história escrita nas páginas do jogo de que todos gostamos.
E é precisamente em nome dessa entrega que pergunto repetidamente: como é possível chegarmos a este ponto? Como é possível? O futebol português tem uma estrutura base forte (FPF), jogadores e treinadores de qualidade e de créditos firmados. Tem boas gerações de miúdos, preparados por técnicos bem formados e competentes. Tem instalações de excelência e uma arbitragem com meios/condições incomparáveis. Tem um conjunto variado de virtudes (clima, gastronomia, segurança) difíceis de encontrar noutro qualquer canto do planeta. Mas em vez de potenciar tudo isso - para se tornar num canto único a nível global (é inimaginável o retorno tremendo que isso traria para todos) - faz o quê? Entrega as lides domésticas nas mãos de quem não tem um pingo de vergonha na cara. O mal está aí. Está em tudo o que gira em torno desta bagunça interna que enche o nosso quotidiano com balões cheios de nada.
O mal está em quem dirige, em quem notícia, em quem alimenta, em quem não actua, em quem se aproveita. O mal está nas mãos dos incompetentes, dos arruaceiros e dos espalha-brasas. Dos cúmplices, dos lambe-botas e dos telhados de vidro. O mal está nas palhaçadas, nos fait-divers e nas malandrices. O mal está nas mãos de quem retira palco aos actores de verdade. Nas mãos de quem tem agenda própria. O mal está na gula de uns e no oportunismo e ambição de outros. O futebol português precisa de coragem. De varriamento. De uma limpeza com soda cáustica, que derreta os canos entupidos de muitas casas. Precisa de coluna vertebral, de idoneidade, de verdade. O futebol precisa de dar luz a jogadores e treinadores, brilho ao seu jogo jogado, valor ao muito que (ainda) tem de bom. Há por aí alguém capaz de se chegar à frente e, de uma vez por todas... dar um murro na mesa? Ou ainda não chega?"

Duarte Gomes, in A Bola

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