Últimas indefectivações

domingo, 16 de junho de 2013

Continua a voar sobre patins...

"António Livramento teve, ao longo da sua carreira, uma grande frustração - nunca ter ganho a Taça dos Campeões pelo Benfica. Jogou três finais de encarnado, perdeu-as todas. Talvez agora lhe tenha sido feita justiça.

UMA  vez, no aeroporto de Narita, em Tóquio, regressando a Portugal após a Final do Mundial de 2002, encontrei o extraordinário cronista brasileiro, Luís Fernando Veríssimo, que regressava, por sua vez ao Brasil. Falámos sobre a vitória do Brasil sobre a Alemanha, na véspera, em Yokohama, e então ele soltou um lamento: «Por mais Campeonatos do Mundo que ganhemos, nunca ganharemos o de 1950...» Há dores antigas que jamais se esquecem.
O Benfica pode nunca mais ganhar as finais da Taça dos Campeões de Hóquei em patins de 1969, de 1973, de 1980, de 1983 e de 1985. Mas finalmente foi Campeão. E talvez ninguém merecesse tanto este título como o meu velho amigo António José Livramento.
Livramento morreu cedo, em 1999, aos 56 anos. Mas não precisou da morte para entrar na lenda. Já tinha entrado. Dispensava-a até largamente porque, tal como o reconheceu outro dos grandes nomes do Hóquei em Patins, Jesus Correia, naquele fatídico dia 7 de Junho, tinha ainda muito para dar à modalidade,à família, à sua mulher e às suas duas filhas, aos amigos que, espalhados por todo o Mundo, apreciavam as suas qualidades e lhe dedicavam uma solidariedade e um carinho especial.
Reconheça-se: António Livramento merecia mais do que a nota de rodapé que anunciou a sua morte na grande maioria dos jornais. Poucos, mesmo muito poucos desportistas portugueses terão conseguido atingir uma tal dimensão mundial nas modalidades que abraçaram. Dirão os cultores da inveja que o Hóquei em Patins nunca foi capaz de conquistar a universalidade e, desse modo, a arte de Livramento se restringiu às fronteiras da diminuta propagação que a sua modalidade atingiu. Não deixarão, infelizmente, de ter alguma razão.
Desde sempre se disse que o Hóquei em Patins era um Desporto praticado num país, numa região, numa cidade e numa rua. O País era Portugal, a região era a Catalunha, a cidade era Milão, em cujos arredores se situam Novara e Monza, e a rua era em San Juan, onde estão sediados os grandes clubes do Hóquei argentinos. Em todos esses lugares, o talento de António Livramento deixou uma marca indelével. Que perdura nas nossa memórias.

A sua enorme frustração
LIVRAMENTO jogou pelo Benfica de 1959 a 1970 e, depois, uma passagem breve pelo Monza, de 1971 a 1974. Numa entrevista concedida a Rebelo Carvalheira explicava com clareza o segredo do seu sucesso: «Não conheci no Mundo hoquista mais sério do que eu! Jogava contra o Sporting, o Benfica ou a selecção de Espanha com a mesma alegria e a mesma aplicação com que fazia contra o Estremoz». Sábias palavras. E anunciava: «Durante a minha carreira joguei cerca de 1700 partidas e marquei mais de 3500 golos». Juntem-se-lhe três títulos de Campeão do Mundo, sete de Campeão da Europa, nove de Campeão Nacional, uma Taça dos Campeões, sete Taças das Nações. Ufff!!! Quem se pode gabar de ter melhor? Ainda por cima se a sua carreira como treinador foi igualmente brilhante e vitoriosa. «Tenho alguns orgulhos na vida», costumava dizer, «sobretudo o de ter sido Campeão Nacional aos 16 anos e Campeão do Mundo aos 17». Falava com a voz rouca dos fumadores e era difícil vê-lo sem um cigarro entalado entre o dedo grande e o indicador.
Uma vez, numa noite de Inverno rigoroso, em Turquel, num jantar que começou depois do treino e se prolongou pela madrugada, desabafou-me: «Já não é a primeira vez que me perguntam se me sinto como o melhor jogador de Hóquei em Patins de todos os tempos, muitas vezes dei comigo a pensar se o terei sido de facto. No entanto, tenho a firme opinião de que o maior de sempre foi o Fernando Adrião. E, a seguir a ele, foram o espanhol Nogué, e o holandês, Holtoff. Eu fui dos melhores». Discordo. Para mim, como para muitos da nossa geração, Livramento foi o melhor e ponto final. E isso deveria ser indiscutível, tão indiscutível como um fenómeno da natureza. Para ele não era.
Muitos dos episódios da carreira de Livramento ouvi-os da sua própria boca, a última vez numa esplanada da Costa da Caparica, quando nos deu conta de uma das suas frustrações da sua carreira, a de não ter conseguido ganhar a Taça dos Campeões pelo Benfica: «Chegámos a ter uma equipa temível, com o Ramalhete, o Jorge Vicente e o Garrancho, entre outros, fomos por três vezes à Final mas havia sempre alguém a cumprir o serviço militar e nunca conseguimos apresentar o cinco base». Um desgosto que milhares de alegrias posteriores trataram de apagar. Como apagaram o desgosto de não ter sido jogador de Futebol, esse sim o Desporto da sua paixão: «Até aos 15 anos joguei as duas modalidades simultaneamente, embora fosse do Futebol que eu mais gostava. Vivi muito tempo indeciso entre optar por uma ou por outra. Foi Torcato Ferreira que me obrigou a decidir pelo Hóquei dizendo-me: 'No Futebol podes ser um jogador como os outros; no Hóquei serás um dos melhores do Mundo'». Provou-se que tinha razão.
António Livramento, nascido em S. Mansos, conselho de Évora, no ano de 1944, morreu no dia 7 de Junho numa cama de hospital, que não é, seguramente, o melhor lugar para se morrer. Lá, onde estiver, uma coisa é certa: ninguém patinará como ele. Por sua causa, muitos de nós gastámos tardes a empurrar, com paus, bolas de pedras para dentro de balizas de sarjetas.
Quem se lembra, lembra-se: deslizava na frente, como se voasse, ligeiramente inclinado, o stick no prolongamento do braço, os cabelos voaram atrás, apenas ligeiramente à frente de uma legião furiosa de espanhóis que o perseguia, a bola invisível, escondida, imperceptível na televisão a branco-e-preto, a única maneira de se ver a bola era nos relatos do Artur Agostinho, ou então quando ele, António José Pereira do Livramento a levantava, redonda e negra, para a enfiar «em colher» na baliza pequenina do Trullols. A gente percebia, então, que era golo porque havia um homem escondido detrás das balizas com uma bandeirinha na mão a confirmá-lo. O Assis Pacheco defendia que, por uma questão nacional, o rematador devia gritar com ganas - «que te mate, coño!» Mas isso era algo que Livramento não seria nunca capaz de fazer. Continuava entretido a voar sobre os patins."

Afonso de Melo, in O Benfica

PS: Vou tirar umas férias nos próximos dias. Portanto isto vai ficar um pouco monótono por aqui. Regressarei com as baterias carregadas.

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