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terça-feira, 14 de março de 2023

Histórias Sem Interesse Nenhum (2) - Não há pai para eles


"“Você não é o meu pai”.

Dos milhões de frases fortes que terei ouvido a grandes desportistas ao longo da minha vida, esta é das poucas que se me gravou no cérebro, sintetizando em meia dúzia de palavras o pensamento holístico sobre quem é, o que pensa, o que motiva, o que relativiza e o que representa a personalidade de um campeão olímpico. Na véspera, naquele inesquecível 21 de agosto de 2008, tinha sido encarregado pela organização dos Jogos Olímpicos de Pequim de conduzir Nélson Évora, em traje de cerimónia e pronto para receber a sua medalha de ouro, no dia seguinte, a determinada hora, à antecâmara do pódio do estádio Ninho de Pássaro - e fiquei fiel depositário do respectivo salvo-conduto.
Com a hora a aproximar-se na Aldeia Olímpica, sem sinal do campeão, que fora “raptado” por amigos e patrocinadores para actividades comerciais, vivi momentos de grande stress, aterrorizado pela perspectiva de falhar a importante missão, por irresponsabilidade alheia. Aquela hora foi a mais difícil de cinco anos de trabalho olímpico, mas ao soar do “gong” ele lá apareceu e ao ouvir o meu “f***-se, Nélson”, respondeu-me com aquele k.o. verbal que me trouxe de volta à terra. “Você não é o meu pai”.
“Pois não, não há pai para ti, meu campeão!” - foi o que respondi entre dentes. Ainda a cambalear, recompus-me do golpe e tomei conta da operação como se nada fosse. Chegámos a tempo, ainda pudemos confraternizar com outro português, Jorge Salcedo, diretor da competição e um dos profissionais mais subaproveitados do desporto português, na antecâmara dos medalhados, saboreando a “azia” do segundo classificado, o inglês Idowu, e o Nélson recebeu a medalha, ouviu o hino e entrou formal e definitivamente na História Olímpica. O meu trabalho continuou, nos múltiplos contactos com jornalistas de todo o mundo, na manhã seguinte levei-o a uma das raras entrevistas globais da CCTV durante os Jogos (apenas um atleta por dia tinha essa distinção) e separámo-nos, por fim, dias depois, com uma derradeira conferência de imprensa no aeroporto de Lisboa.
Passaram quase 15 anos e a erupção do vulcão adormecido desde que Pedro Pichardo tomou o lugar dele no Benfica, na lista de recordistas e na galeria de campeões, ameaça reduzir a cinzas todo um património de prestígio e referência que ambos construíram com muito trabalho e dedicação, em nome de um país que os acolheu como filhos dilectos.
Esta eclosão de rivalidade doentia, com laivos de xenofobia, deixou-me mais combalido e impotente do que aquele episódio de Pequim: o Nélson Évora estava (ainda está) no meu Olimpo de intocáveis.
Em cima disso, o aparecimento do papá-treinador de Pichardo, a lembrar aquelas zaragatas de pais nas bancadas dos jogos de iniciados, não veio ajudar a suster os efeitos telúricos deste choque de titãs e sublinha a desvantagem em que Nélson ficou quando, após os Jogos do Rio de Janeiro, decidiu abdicar do seu treinador de 25 anos, o discreto e tranquilo professor João Ganço, que o considerava como um “bom filho”.
Neste caso, Nélson e Pedro, estamos todos de acordo que “não há pai para vocês os dois”: resolvam lá isso como campeões! E como portugueses, fiéis e orgulhosos depositários da nossa bandeira e da nossa honra."

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