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domingo, 4 de setembro de 2022

Qual é a melhor forma de sermos amigos do futebol?


"Desbaratar a palavra “amigo” causa-me comichão, entramos no táxi e somos amigados, pedimos um café ao balcão e rotulam-nos de amigo, quando quem nunca vimos mais gordo nos quer pedir algo o passo mais dado é amigar-nos logo à primeira frase. A noção de “amigo” é maltratada, esvaziada de significado, banalizada com pedidos de amizade enviados em ecrãs táteis sem que as pessoas se conheçam, confesso que me faz confusão, mesmo que Nélson Rodrigues escancarasse muitas das suas crónicas de jogo com “Amigos,” e assim arrancava a prosa que embelezava o futebol até aos píncaros.
Que a paz o tenha e nós desfrutamos de livros como os seus, que são a antítese das pessoas, letras botadas em folhas não têm prazos e tão pouco sabem de efemeridade, na Feira do Livro de Lisboa estão exemplares do “Brasil no Campo” a preceito, do livro que reúne tantas crónicas escritas por aqueles dedos cheios de dramaturgia em jornais que arrancam com “Amigos,” ele endereçava-se a gentes desconhecidas tratando-as com a palavra que pressupõe proximidade e se calhar era um isco, é provável, um engodo de quem se fez extremamente amigo do futebol para cativar as pessoas a maravilharem-se pelo bonito e não sucumbirem à feiura daninha.
Os exemplos de fealdade são semanais, às vezes diários. A bola rola em relvados enquanto manhas ou truques a tentam quadrangular, a sua repetição exaustiva por vezes fá-los parecerem parte do jogo, eis o “faz parte” a ser vulgarizado como o “amigo” e daí termos de nos agarrar a quem, de vez em quando, surge como amicíssimo do futebol não por o declarar, mas porque é impossível escondê-lo. E a amizade de Francisca Nazareth com a bola é absoluta.
Não era preciso demonstrá-lo, mais uma vez, na final da Supertaça de Portugal que a teve sentada no banco durante uma hora, só uma mazela física pode justificar esse atentado à futebolidade, quando ela entrou em campo viu-se a faceta mais admirável que pode haver do talento. É a naturalidade, a desfaçatez de quem passeia uma relação com a bola distintamente superior à das restantes mulheres em campo. Pode não ser a melhor a dado momento, nem a mais prática, mas, como a abreviadamente apelidada de Kika o tem evidenciado, o tempo tende a limar-lhe as intervenções num jogo ao ponto de serem as que veem luz onde outras se perdem na escuridão.
Aos 19 anos, joga com resquícios de futebóis passados, dos tempos em que pediam a Nélson Rodrigues para o prosar, a sola da chuteira com que pisa a bola, o descaramento de ficar parada e à espera que a tentem roubar só para se evadir elegantemente; a ginga ágil de corpo para eludir essas tentativas e dar um recado à bola para ser entregue à corrida de outra jogadora. Kika Nazareth tem essa rara qualidade: a de fazer ver a quem joga com ela os melhores caminhos até quando as outras jogadoras não arrancam logo, não fazem a corrida certa ou reagem tarde.
O quão já joga, com esta idade, faz Portugal ser literalmente pequeno para o seu não quantificável talento e a jogadora que é ser ainda mais imensurável devido à forma como Kika existe no futebol. Como ela se amiga do jogo: é quem se diverte a dar toques e a manter a bola no ar com uma apanha-bolas no estádio, durante o intervalo; é a craque do Benfica que foi à Academia do Sporting ver o jogo das rivais nas meias-finais da Supertaça; é quem passa férias com adversárias e partilha fotos; quem as abraça a torto e a direito em campo e sem pudores, constatando a amizade que têm (felizmente, está longe de ser a única). Simples atos que fariam muitos ‘adeptos’ espumar de raiva infundada e idiota caso fosse um jogador de um desses clubes a mimicá-la.
Francisca é o despretensiosismo em formato de jogadora. Não era preciso constatá-lo há dois meses, quando, pouco antes de a seleção viajar para o Europeu, fui atrelado ao Pedro Barata (que as viu de perto no torneio) ver num treino a forma como Kika era genuína alegria por estar a viver o que a transcende sobre as outras jogadoras e, em simultâneo, ter a simplicidade de quem quer lá saber se é melhor ou pior do que quem seja no “futebol jogado por mulheres”. É assim que lhe chama, sem o dividir por géneros. Mas elas jogam-no e vivem-no e valorizam-no como os homens já raramente o fazem. Umas amigam-se do jogo enquanto outros de desamigam dele.
É no futebol jogado por homens que se trocam insultos sem trela, mais se vê jogadores a levarem as mãos à cara após um toque no ombro, se avistam desrespeitos de deixar pessoas de mão estendida, se presenciam ameaças, se eleva este jogo despropositadamente na escala das coisas importantes na vida e se fomentam guerrilhas de umbigo quando algo não corre como fulano ou beltrano desejaria. Este fim de semana foi mais um a mostrá-lo. O floreado da visão de Nélson Rodrigues sofreria se lhe pedissem palavras acerca do cinzentismo do futebol português, a não ser que visse o sorriso estampado na cara de Kika Nazareth, uma das melhores amigas, de verdade, que a bola já tem."

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