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sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Maradona e a morte do indivíduo


"Mas há uma coisa que não me parece subjectiva: o futebol do tempo do Maradona era mais lento, mais belo e mais livre do que este futebol do Ronaldo. Perdemos liberdade (e não só no relvado).

É impossível não relacionar Maradona com Ayrton Senna, dois dos grandes heróis da minha geração. Maradona e Senna carregam a mesma temperatura emocional, balizam uma época vai desde o México 86 de Maradona até ao desastre que matou Senna em 94. Se quiserem, é o tempo que vai do esplendor da infância até ao início da adolescência.
Maradona desenhava no relvado aquilo que Senna sulcava no asfalto: o impossível, o ilógico, a loucura criativa de um génio deixado à solta. Ora, fala-se muito desta genialidade de ambos, mas fala-se pouco de outra questão que me parece mais importante: eles tiveram liberdade para serem génios, tiveram licença para soltar a imprevisibilidade. Hoje em dia, os jogadores e os pilotos têm muito menos liberdade para serem loucos. Se na F1 a máquina computorizada tomou o lugar do piloto audaz à Ayrton Senna, no futebol a potência muscular tomou o lugar da génio livre à Maradona.
No futebol mecanizado desde século, Maradona teria sido o Maradona? Neste futebol ultra científico e objetivo marcado por treinados ditadores que impõem aos jogadores um padrão de jogo mecânico, Maradona, Garrincha, Hagi, Futre ou Chalana teriam atingido o estrelato? Quando me cruzo nos corredores da Renascença com as vozes familiares da Bola Branca, costumo fazer este desabafo: gosto cada vez menos de ver futebol, porque vejo cada vez menos o indivíduo, vejo cada vez menos o improviso e a liberdade. Ou seja, o nosso futebol, o soccer, está cada vez mais parecido com o futebol americano: padronizado, previsível; os jogadores não usam a sua liberdade numa sistemática adaptação criativa ao jogo; ao invés, repetem em campo um conjunto de jogadas que o treinador impõe. O jogo perdeu beleza, encanto, aquele bruaá do imprevisto. É um paradoxo: o futebol está mais rápido, mas também está mais bocejante.
Não sei se Ronaldo ou Messi são melhores do que Maradona. Nem quero entrar nesse debate, até porque não há debate possível. Para mim, Maradona será sempre o melhor jogador porque é a estrela da minha infância e do ‘meu’ Mundial, México 86. Mas há uma coisa que não me parece subjetiva: o futebol do tempo do Maradona era mais lento, mais belo e mais livre do que este futebol do Ronaldo. Perdemos liberdade (e não só no relvado)."

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