"De repente, entre memórias dispersas, recordei-me do tempo que passei nas Honduras. E do Benfica nas Honduras. Porque não há lugar no mundo para o qual a velha e nobre águia não tenha voado na sua travessia do mundo...
Num dia qualquer cuja data já não recordo, estava em El Salvador, no aeroporto que fica a cerca de 40 quilómetros da capital, San Salvador. Era muito cedo e estava pouca gente à espera de voos. Um senhor brasileiro, talvez por me ver a ler um livro em português, dirigiu-se-me educadamente com uma conversa de circunstância. Às tantas, quis saber para onde eu ia.
- Tegucigalpa, respondi.
E ele, quase zangado:
- Tegucigáupa!!!??? Cê vai deliberadamente para Tegucipáupa!!!???
Fui. Deliberadamente.
E gostei. Cidade despretensiosa, capital das Honduras, país de vulcões, espalhada pelo vale do Rio Choluteca. Os Maias deram-lhe o nome: Taguz Galpan, Montanhas de Prata.
Tegucigalpa tem um nome que me obrigou a lá ir. Eu, que viajo por nomes.
Os nomes chamam-me: Thiruvananthapuram, Panajachel, Tiruchirapalli, Ngorongoro, Ougadougou, Adis-Abeba, Novosibirsk, Luang-Prabang, Lhasa...
Chamam-me, e eu vou. Uma vez estava a ver um programa sobre Bobo-Dioulasso, no Burkina Faso. Dois dias mais tarde estava lá. O nome deixou-me encantado. Por isso, não concebia existir no mundo uma cidade chamada Tugucigalpa e não lá ir. Deliberadamente.
As viagens do Benfica
No dia 17 Junho de 1980, o Benfica estava em Tegucigalpa. É isso mesmo: em Tegucigalpa e deliberadamente.
A águia voava pela América Latina numa daquelas suas impressionantes digressões que a faziam percorrer o planeta a ganhar rios de dinheiro. Eusébio já não fazia parte, mas continuava a haver nomes que atraíam gente aos estádios aos magotes, como José Henriques e Nené, Carlos Manuel, Alves ou Chalana.
O nome Benfica tinha pátina. Uma jóia antiga sempre polida.
Os encarnados ganharam por 2-1 e uma selecção hondurenha, e não se pode dizer que esse jogo ficasse marcado a ouro na existência do Clube. Ou, se calhar, estou a ser injusto. Afinal, quantos clubes do mundo recebem convites para jogarem deliberadamente em Tegucigalpa?
Há uma estrada que sai de Tegucigalpa para norte, e eu tomei essa estrada. Lembrava-me daquela música que dizia:
'E a coisa mais certa
De todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol
E o sol sobre a estrada
É o sol sobre a estrada
É o sol...'
Recordo coisas a eito'.
A estrada tomava a direcção a norte, a Comayaguela e em seguida Tamara e Zambrano, sempre aos ziguezagues pelo meio dos montes de árvores cerradas de onde fugiam os tucanos. Comayagua, Siguatepeque, El Porgresso, San Pedro.
A minha rota terminava em San Pedro: San Pedro Sula.
Fazia um calor bruto nas margens do Golfo do México. San Pedro Sula: cidade de bananas e violência. Já lhe chamaram a Capital Assassina do Mundo. Comércio de droga, guerra de gangues, o dinheiro que vem dos senhores do tráfico de Los Angeles.
Não vi ninguém morre em San Pedro Sula.
Apenas aquela brisa inconfundível das Caraíbas fixando-se na pele para nunca mais sair.
Às vezes a violência é mais assustadora quando se esconde no silêncio.
Recordei a frase que li escrita numa parede da Calle Poniente, em San Salvador: 'Salvadoreños - tanta tranquilidade me da miedo!' E o início do filme Platoon, lembram-se, de Oliver Stone, a voz de Chris Tayloe ouvindo-se por entre o ruído mecânico do helicóptero: 'I think now, looking back, we did not fight the enemy, we fought ourselves. The enemy was in us. The war is over for me, now, but it always be there, till the end of my days'.
No dia 22 de Junho de 1980, o Benfica estava em San Pedro Sula. Há algum lugar do mundo sobre o qual a águia não tenha voado? Voltou a ganhar à selecção das Honduras, enxertada por alguns jogadores mais jovens, desta vez por 3-2.
Quando lá estive, lembrei-me de histórias que o meu amigo/irmão Toni me contou dessa digressão que os levou primeiro a Caracas para jogarem com o Real Madrid, e vinha preparado para falar sobre esse jogo com tudo de clássico.
Entretanto perdi-me, peço-vos desculpa, leitores sempre tão pacientes para com as minhas indesculpáveis divagações. Com a promessa de que voltarei a esse Benfica - Real Madrid de Caracas que precedeu a viagem dos encarnados às Honduras esse país a quem para alguns, ninguém vai deliberadamente.
Eu fui. E o Benfica também."
Afonso de Melo, in O Benfica
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