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segunda-feira, 1 de abril de 2019

Porque corre, excelência?

"O homem é o único animal que corre sem ter pressa, medo ou fome

Uma definição alternativa
1. Eis uma personagem, o senhor Céptico. E eis o que ele diz: o homem é o único animal que corre sem ter pressa, medo ou fome - eis uma definição possível.
De facto, correr sem um sentido prático, sem um objectivo funcional, parece actividade de crianças, ou de loucos. Ou de animais irracionais dirá o senhor Céptico.

O burguês com sentimentos de culpa
2. Há vários textos irónicos, destrutivos e divertidos que avançam furiosamente contra essa obsessão do jogging.
Duas fúrias em duelo.
Miguel Esteves Cardoso, num texto já clássico, incluído na antologia 'A Causa das Coisas', fala precisamente sobre o acto humano, bem humano, de correr para manter a saúde ou a forma física, de declara, taxativamente «Qualquer avestruz ou leoa recorrer a essa desagradável actividade apenas quando é estritamente necessário».
Segundo a divertida teoria de MEC a obsessão pelas corridas não seria mais do que «uma manifestação de uma vasta e anímica saudade dum passado proletário». O burguês, com sensação de culpa, ali estaria em corridas circulares e sem sentido para não esquecer os «bons velhos tempos do trabalho manual, da pilha a gás no capacete do avô mineiro»; e também num mergulho na memória cultural da espécie que relembra, com esse esforço físico, os «antepassados queridos, a remar lealmente nas galés dos romanos» e o «homem de Neandertal, sentado numa esplanada da altura a britar sílex».
Não suportando a excessiva civilização, os humanos optariam por «suar sem razão nenhuma» como se assim voltassem aos tempos «em que nove em cada dez joggers tinham um pterodáctilo a correr atrás deles».

Um chimpanzé intrigado
3. E sim, o homem é o animal do grande desperdício, diz Céptico. É o animal que gasta imensa energia inutilmente, sem estar a fugir ou perseguir algo.
Porque corre este animal?, poderia perguntar um chimpanzé que, de repente, descesse das árvores e visse aquele ser mais ou menos próximo fisicamente de si, a correr, com calçõezinhos, em círculos ou em linhas rectas sem qualquer prémio ou castigo no destino. O chimpanzé, murmura, divertido, o Céptico, iria coçar a cabeça e perguntar a si próprio, com o seu cérebro possível: será que isto é realmente a evolução?
Em termos animais, de facto, fazer jogging é tão absurdo quanto imaginar um tigre a dar voltas em redor de uma planície para manter a forma e para estar apto, mais tarde, para fugir ou caçar de maneira mais ágil. Claro que o crente no jogging dirá que o homem corre sozinho em parte para manter a saúde; e sim, isso é verdade, mas também e verdade, dirá o Céptico, que o humano faz jogging para manter ou alcançar certas medidas corporais que possam fazer com que o seu corpo, tal qual um objecto, consiga caber numa roupa com certas dimensões médias.
O mais grave de tudo, alerta a grande ironia de MEC, e «o mais triste é que, muitas vezes, estas criaturas possuem meios alternativos de locomoção, tais como BMWs, preferindo mesmo assim calcar terreno como os selvagens ou outrora».
Ver alguém a estacionar o seu carro, veloz e confortável, e a sair de lá equipado a rigor, enfrentando por vezes ventos fortes, e até chuva, é no mínimo estranho. Como salvaremos estes seres, pergunta o céptico.

Dois lemas finais
4. Poderíamos dizer: Excelência, ficámos bípedes, sim, para ter o prazer de nos sentarmos. Ou, parafraseando Pessoa: que bom ter uma corrida para correr e não a fazer."

Gonçalo M. Tavares, in A Bola

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