"Estava marcado um jogo de futebol para crianças em Nova Iorque, banal nas entranhas, com pais babados prontos a assistirem em redor, mas o árbitro não apareceu, então o organizador teve de perguntar quem dali, mais do que vagar, teria conhecimento das regras do soccer para safar o imbróglio e servir de pessoa do apito. Perante o entroncamento, um tipo barbudo, com boné a pontuar-lhe a cabeça e pernas arqueadas chegou-se à frente. De bom grado assumiu o posto, mas, durante a partida, outros pais cedo mostraram o seu desagrado perante as insistentes vezes em que ele parava a ação e se punha a dar instruções à canalha e a corrigi-la.
Algures em 2013, a desfrutar do seu ano sabático, Josep Guardiola i Sala nem a gozar do estatuto incógnito no país que pouco liga ao futebol era capaz de relaxar, de por um segundo desligar a ficha da tomada e se escusar a irritar progenitores preocupados apenas com ver os filhos a divertirem-se. Sabemos o que lhe aconteceu antes e depois desse breve interlúdio pelas Américas: o treinador viera de 247 jogos com o Barcelona onde literalmente tudo conquistara em quatro anos, iria para três épocas e 160 partidas dominadoras com o Bayern de Munique e, mais tarde, entraria no Manchester City, que transformou no primeiro tetracampeão inglês e levou à vitória na Champions, feito que lhe cobravam para a sua valia ser provada sem ter um particular argentino na equipa.
A obsessão de Guardiola por futebol, não é de agora, roça o limiar do saudável. Calvo por tanto matutar acerca dos imponderáveis da bola, o catalão vai numa série de apenas uma vitória e dois empates em 12 jogos, cheio de derrotas que confluem para uma pintura inaudita de tão negra: o City recheia-se há quase dois meses de uma constante que é raríssima em Pep e equivalente nem a 13% das 905 partidas da sua carreira. O mais bem-sucedido técnico, porque dominador, dos últimos 15 anos do futebol, guiado por um ditador estilo que verga adversários ao seu carrossel de passes, de repente não arranja forma de ganhar um encontro.
Várias possíveis explicações haverá para o fenómeno. A fulcral será a lesão de totémico Rodri, o Bola de Ouro e mais influente dos médios, sem o qual a equipa fica desguarnecida de quem lhe segure os cordéis das marionetas coreografadas para o jogo de posse de Guardiola. Outras, igualmente detetáveis sem esforço, serão o baixio de forma dos seus pesos-pesados (Phil Foden, Kevin de Bruyne, Gündoğan, Bernardo Silva), incapazes de renderem o que se viu neles em épocas anteriores, as consecutivas mazelas de outros jogadores nucleares (Rúben Dias, John Stones, Akanji) ou os erros individuais que custam golos, minando o Manchester City em quase todos os jogos deste período.
Depois, existirão teorias.
Casmurro no olhar de muitos, compulsivo na estima de alguns, como na do pai de uma criança que o confrontou, noutra ocasião de criançada em Nova Iorque, por o ver a corrigir posicionamentos do seu filho, que jogava pela equipa adversária (episódio também contado pelo viciante podcast ‘Heroes & Humans of Football’), há um caso passível de ser desenhado com base nas falências do próprio treinador.
A habitualmente louvável fidelização de Guardiola ao seu estilo, à sua forma de fazer as coisas, está a tramar o City por manter a linha defensiva subida no campo, a conceder a enormidade de espaços que a equipa é incompetente a resguardar quando perde a bola. Ao não mudar a postura, não está a proteger quem joga. Também se pode apontar que está a colher os frutos podres de ter empurrado, até restringido, a liberdade criativa dos seus jogadores para momentos tão específicos dos padrões coletivos que agora, quando precisa de alguém que fuja às chocalhas e resgate a equipa das masmorras, faz com que ninguém se solte. Nem Jack Grealish, antes o maior vagabundo em campo do futebol inglês, espírito livre dos raides e dribles, hoje amestrado pela ordem que com os anos lhe tirou o risco da finta, a ousadia do remate, em prol de ser o porto seguro a quem se dá a bola, mas para ele a reter, conquistar faltas e deixar os companheiros recuperar o fôlego.
Além da insistência em não se desviar do plano, expondo aos adversários o conforto de saberem que é assim e assado que podem machucar o Manchester City, pode Pep ter ido longe demais na sua domesticação dos libertários?
Até o bem-disposto Jack, leve no trato, bonacheirão de gestos e ânimos, que não marca há 36 jogos e deu três assistências em ano e meio, mostrou três dedos da mão aos adeptos do seu Aston Villa, este fim de semana, lembrando o trio de Premier Leagues que tem no currículo com o City, rendido ao tipo de reação atiçada que Pep Guardiola já tivera, em Liverpool, com seis dedos dos seus esticados no ar para responder ao escárnio da falange em Anfield Road. Isto no homem que leva as mãos à careca, agacha-se, afunda a cabeça nas cócoras e chegou a quase mutilar-se, abrindo feridas no crânio e nariz com as unhas durante um dos jogos desta recente travessia em que confessa estar stressado e a ter noites pouco dormidas. O lado azul de Manchester cedeu às artes ocultas do mau perder, ou pelo menos aos sintomas.
Mas a explicação mais plausível no futebol em que os neurónios queimados no treino, a pensar em tática e sistemas, apenas te levam até certo ponto, será ir ao lado factual da coisa: Guardiola nunca tivera de ir ao tutano, em 16 anos de carreira, para tirar uma equipa de um ciclo destes, em que perder parece fácil e ganhar custa horrores. Provavelmente, um dos melhores treinadores da história, porventura quem mais influenciou o futebol moderno, não está a saber lidar com a continuidade da derrota.
É um estímulo novo para Pep. O máximo que estivera sem ganhar, mas empatando aqui e acolá, fora em 2016, já com o Manchester City, quando esteve seis jogos sem vitórias. Não somos moscas na parede para atestarmos como discursa o treinador perante os seus nestes delicados momentos, que conversa tem com cada jogador à parte, os truques a que recorre, o trato que dá ao cerne da pessoa diferente para ressuscitar os ânimos. Um técnico distingue-se pelo conhecimento tático, nos treinos e a agir durante os jogos, mas as habilidades pessoais têm de seguir em paralelo. E não sabemos, porque é inédito, como a obsessão de Guardiola se molda a uma secura de resultados desta aridez.
Uma outra explicação, tão simples se bem que palpiteira, pode estar na hipótese de os jogadores sentirem fastio com os seus métodos. São já muitos anos juntos, muitas épocas a ganharem, ninguém é imune ao tédio das rotinas. Apesar de ser sinónimo do que mais excelso existe no futebol, Pep Guardiola está a aprender no posto a conviver com a realidade que visita, às tantas, a enorme maioria dos treinadores - a ter que tirar uma equipa de hábitos perdedores. Constatar isso será elogiar-lhe a carreira mais do que empolar uma crítica ao declínio recente. Só na sua 16.ª época, e aos 53 anos, se pôs a jeito para experimentar tal coisa no futebol."
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