"Chamados um a um, os jogadores dos Boston Celtics dirigiram-se ao centro do campo. Os anéis dos campeões estavam expostos numa espécie de montra de ourivesaria que ficou órfã de riqueza quando lhe foi usurpado o último exemplar. Neemias Queta foi dos primeiros a proceder ao levantamento da jóia personalizada. Enroscou-a no dedo da mão esquerda e saboreou o comprovativo material de quem contribuiu para o 18.º título da história da equipa. O perfeito encaixe do cachucho consagra uma história de Cinderela com a nuance de que o eleito não calça um sapato de cristal. A prova do seu heroísmo é antes feita à medida de uma mão lustrosa, que sustenta a ostentação dos quilates.
Acompanhar a história de Neemias Queta com a palavra “sorte” é subtrair-lhe uma camada de resiliência. Não o fazer é ignorar que na infância não dormia com perspetivas grandiosas ao lado da mesa de cabeceira. Culpa do sítio onde estava a cama.
Quando entrou na NBA, em 2021, sendo o primeiro português a fazê-lo, as únicas coisas que Neemias bordou no fato foram as iniciais dos nomes dos familiares mais próximos e o “2835”, código postal onde o carteiro deixa a correspondência enviada para o Vale da Amoreira. Por ter crescido num bairro social, Neemias não usufruiu do privilégio de ter desde o berço expectativas que o colocassem no topo do mundo. Há sítios onde a ambição está proibida de entrar e os problemas têm livre-trânsito.
O Vale da Amoreira não foi o destino final de Neemias Queta. À certidão de nascimento ninguém anexou uma sentença que o condenasse a ser um eterno prisioneiro dos limites impostos pelos outros. Neemias levou o bairro ao mundo e fez o mundo olhar para o bairro. Felizmente, quem recruta protagonistas para histórias inesperadas tem um olho em todas as esquinas, até naquelas que a sociedade pretende usar como arrecadação das suas imperfeições.
O gigante Neemias parece ter crescido com as queixas que preferiu engolir em vez de expressar. Do Vale da Amoreira até ao pavilhão do Barreirense, o primeiro clube que representou, muitas vezes percorria cerca de 12 quilómetros a pé para treinar com todo o prejuízo que a caminhada tem para um jovem no prelúdio do desempenho de atividade física intensa. Queiramos então comparar a vantagem que tinham os colegas cujos pais os deixavam à porta do pavilhão. Neemias começou todo este jogo a perder e claro que isso não é justo.
Portugal tem um jogador na NBA graças à empatia de quem deu a Neemias, mais do que a mão, a oportunidades de se desenvolver. O seu sucesso é o que acontece quando não olhamos com preconceito para os bairros e tentamos diminuir as desigualdades sentidas por quem vive neles. Os moradores destes locais não são restos, são talento para o qual ainda não olhámos com atenção.
Por isso, é recomendável que levantemos o tapume para vermos o que há lá. A surpresa pode não ser assim tão má e talvez se descubra que é aos encobertos que estão reservadas proezas que muitos pensam exclusivamente destinadas aos “““cidadãos de bem”””. Depois, quando os Neemias deste mundo – os do basquetebol, os da arte, os da advocacia, os da ciência, os da medicina – singrarem, aplaudiremos como se os logros deles fossem nossos, quase sem nos apercebermos que lhes passámos rasteiras e dificultámos o caminho.
Este verão, Neemias Queta organizou o primeiro campo de treinos com o seu nome em Portugal. Quando a Tribuna Expresso foi a Carcavelos fazer uma reportagem sobre o assunto, encontrou Paulo Maldine, um jovem que frequentou a iniciativa. Quando nos disse que vinha do Vale da Amoreira, foi inevitável compará-lo com Neemias. Paulo foi meigo nas expressões que usou na conversa. Disse que praticava basquetebol “pelo coração” e porque “via muitas coisas maravilhosas” no jogo. Era dos catraios mais calados entre aqueles que tiraram uma semana de verão para estarem perto de Neemias. As estrelas nos olhos diziam um pouco mais sobre as aspirações que tinha. Visto de baixo para cima, pareciam sonhos a brilhar. Paulo, tal como Neemias naquela idade, era lingrinhas, mas com braços e pernas infindáveis. A altura era já superior à média de um homem adulto. Isto para dizer: os próximos a vingar estão já aí, não os percamos de vista.
Allen Halloween foi um dos muitos rappers que pintaram a perspetiva do interior dos bairros bem antes da reputação dos mesmos ser um tópico em voga. “Putos dum bairro onde ninguém quer viver // Jovens que abandonam a escola muito cedo // Não é fácil ser doutor quando os pais assinam com o dedo”, cantou a sua rouquidão em “Várias Vidas”. Tratemos de nos importar com o futuro dos nossos hipotéticos heróis.
P.S. – Na noite em que ocorreu a cerimónia de entrega dos anéis aos campeões da NBA, os Boston Celtics de Neemias Queta venceram os New York Knicks (132-109) no TD Garden. Seguiram-se deslocações a Washington e Detroit onde derrotaram os Wizards (102-122) e os Pistons (118-124). Na semana inaugural da temporada, o poste português participou em dois jogos."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!