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domingo, 15 de julho de 2018

O problema das gajas boas

"Irão interdita estádios às mulheres, FIFA quer que TV deixem de procurar as sexy no público. Qual é a diferença?

No dia 20 de Junho, mulheres puderam, pela primeira vez em 38 anos, entrar num estádio de futebol no Irão, para assistir à transmissão do jogo da selecção nacional com a da Espanha. Em maio, activistas feministas tinham-se fotografado num estádio usando bigode e barba, e em Março 35 foram detidas por tentar assistir a um jogo. No início do mundial, uma adepta iraniana tinha apelado à FIFA para que pressionasse o país no sentido de acabar com uma proibição que até a Arábia Saudita levantou no ano passado. O presidente da organização disse que havia sinais do regime iraniano nesse sentido - e, de facto, seguiu-se a autorização para assistir à transmissão.
O motivo alegado para a proibição é o mesmo que preside à imposição do véu e da roupa "não reveladora" para as mulheres no espaço público: protegê-las daquilo que se considera ser o "natural comportamento masculino", que no clima de excitação dos jogos implicará, do ponto de vista das autoridades religiosas, o perigo de serem molestadas com linguagem "imprópria" e outros tipos de assédio. Ou seja, para os imãs iranianos - como para as autoridades religiosas que, inclusive em países ocidentais como Itália ou Croácia, as obrigam a "cobrir-se" quando entram num templo para não "desviar a atenção dos homens para pensamentos pecaminosos" - as mulheres existem como projecção do olhar e vontade dos homens, como seres-para-os-homens, ou, para usar um antigo jargão feminista inteiramente adequado, objectos do desejo masculino.
Apesar da obviedade disto, não faltou quem, nas reacções à iniciativa da FIFA de admoestar os operadores televisivos por insistirem em planos de "mulheres atraentes" no público dos jogos, asseverasse que "daqui a pouco obrigam-nas a usar burqa." É normal: perceber o contínuo entre a proibição iraniana e a obsessão das TV com aquilo a que tantas vezes ouvimos os comentadores apelidar de "caras bonitas" implica ser capaz de tomar consciência de que o estatuto da mulher visto como "natural" é uma construção a partir da perspectiva masculina. E de tal modo será difícil perceber isso que entre as palermices que logo se disseminaram sobre a iniciativa da FIFA, estão, além do demagógico uso das palavras "proibição" e "censura" pelos media (a FIFA não proibiu nada, limitou-se a recomendar), pérolas como "agora só podem filmar mulheres feias, é?" ou "querem proibir as mulheres bonitas".
Aparentemente, quem diz e até escreve estas coisas em colunas de jornal não consegue olhar para os planos de público dos jogos de futebol (ou das touradas, outro clássico) e ver que o critério usado para focar homens e mulheres é radicalmente diferente: eles ou são protagonistas do espectáculo (jogadores, árbitros, equipa técnica) ou adeptos especialmente "enfeitados", patuscos ou emocionados. Ou seja, focados como sujeitos de acção.
Nenhum homem é filmado nas bancadas apenas por ser "bonito"; e mesmo quanto aos jogadores nunca há, nos estádios, planos apertados das respectivas nádegas, peitorais ou abdómen, ou seja, nunca os vimos serem focados como objectos sexuais - mesmo se é óbvio que para a maioria das pessoas, mulheres e homens (homo ou hetero), os craques são símbolos sexuais. Isso seria, considerarão decerto os realizadores, "degradante", "desrespeitador", quiçá "ordinário". Em contrapartida, as imagens de mulheres e de partes de corpos de mulheres são uma constante tão naturalizada que a Getty Images publicou, a 25 de Junho, uma colectânea de fotos "das fãs mais quentes do mundial" anunciando-a num tuite com o texto "futebol é conhecido como o jogo mais belo e isso inclui as suas fãs. Vejam as fotos das mais sexy." A agência acabaria por apagar o tuite e as imagens, pedindo desculpa, após acusações de sexismo e misoginia.
Como os organizadores da Volta à Espanha em bicicleta, que anunciaram o ano passado o fim das "raparigas do pódio", e a Fórmula 1, que fez o mesmo este ano, a FIFA parece ter tomado a decisão de combater o sexismo e a discriminação das mulheres, afrontando as legiões de grunhos que lhe vão chamar puritana e censora. Antes tarde que nunca, FIFA. Mas, sob pena de dar razão a quem alega que a preocupação só lhe surge tendo em vista o local do próximo mundial -- o muçulmano Qatar -- é imperativo que se pronuncie sobre a ignóbil interdição iraniana."

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