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quinta-feira, 2 de junho de 2016

A lenda dos Magriços

"Há meio século, a selecção alcançou o seu primeiro Mundial, em Inglaterra (com quem volta hoje a jogar em Londres, na preparação para o Euro). Os portugueses espantaram tudo e todos, com um jogo épico contra a Coreia do Norte e consagrando uma lenda, Eusébio. O Expresso juntou seis Magriços
Em 1966 estiveram todos juntos e deram aos portugueses uma das maiores alegrias colectivas do século passado: o terceiro lugar no Mundial de Futebol de Inglaterra. Agora, meio século depois, alguns dos seis Magriços que responderam positivamente ao convite do Expresso já nem se reconhecem à primeira vista.
É o caso do antigo defesa-esquerdo benfiquista Fernando Cruz, que franze o sobrolho quando olha para o ex-médio sportinguista Fernando Peres. Minutos depois, no restaurante do campo de golfe anexo ao Estádio Nacional, em Lisboa, que foi o ponto de reencontro, é o antigo defesa-central leonino, Alexandre Baptista, quem não consegue identificar o homem de estatura média, e hoje atarracada, que tem pela frente: trata-se de Fernando Cruz. Este é, curiosamente, o único dos antigos futebolistas fora de jogo no teste da balança. De um modo geral, os anos passaram por eles (estão todos na casa dos 70), mas a aparência confirma que se está perante antigos atletas. Fernando Peres, esse então, enxuto de carnes, parece muito longe dos 73 anos que já leva.
Chegam aos poucos. Peres, Cruz e José Carlos, ex-defesa do Sporting, são os primeiros. De seguida junta-se-lhes Alexandre Baptista. António Simões, o antigo extremo-esquerdo do Benfica, entra alguns minutos depois, antes do sexteto ficar completo com o também ex-benfiquista José Augusto, ponta-direita da temível linha avançada do seu clube e da selecção. Com a miniequipa já quase à mesa, e uma vez desfeitas dúvidas sobre os paradeiros dos mais desligados do circuito público — aqui o campeão é Fernando Cruz, várias décadas emigrado nos Estados Unidos e a viver em Cabanas de Viriato, distrito de Viseu —, começou a imperar a boa disposição e uma salutar provocação.
Simões é, em muitos momentos, o mestre de cerimónias. A primeira vítima é José Carlos, a quem um percalço doméstico deixou recentemente a cara maltratada. “Deste uma cabeçada na bola ou no adversário?”, pergunta agilmente o antigo atacante, homem que enchia os estádios de fintas repentinas. A resposta de José Carlos é rápida e seca, a mostrar que o antigo defesa não perdeu o jeito para cortar as jogadas adversárias: “Foi num degrau lá de casa”, onde tropeçou a brincar com um neto, explica, bem-disposto.
MEMÓRIAS: O Expresso desafiou os Magriços para um reencontro. Responderam à chamada seis, para uma fotografia no relvado do Estádio Nacional, no Jamor, no dia 20, onde dois dias depois se realizou a final da Taça de Portugal. Em cima, da esquerda para a direita: José Carlos, António Simões, Fernando Peres e Alexandre Baptista; em baixo, José Augusto e Fernando Cruz
Os anos 60 do século passado foram a década de ouro do futebol português. O Benfica foi bicampeão europeu e marcou presença em mais três finais. Num período de sete anos (de 1961 a 1968), os encarnados estiveram quase sempre entre os dois melhores clubes da Europa. O Sporting, por sua vez, venceu uma Taça das Taças. Com tanta abundância, 1966 foi a cereja no topo do bolo: a participação num Campeonato do Mundo, a primeira da história desportiva nacional, saldou-se num terceiro lugar, o melhor de sempre até hoje na maior competição futebolística do planeta. Mas mais do que a classificação, foi um futebol que encantou o mundo, um desafio (com a Coreia do Norte) que se tornou épico e um jogador (Eusébio, pois claro) que seria consagrado imortal.
Cinquenta anos depois, a poucas semanas de outros futebolistas com a camisola das quinas entrarem em campo no Europeu de França, seis dos Magriços desfiaram algumas das suas memórias desse ano longínquo.

“VOCÊ, GURI, VAI JOGAR COMO QUISER”
Não há Mundiais sem uma fase de apuramento, e esse foi arrancado a ferros, com um jogo decisivo na Checoslováquia em que a seleção lusitana ficou praticamente reduzida a dez elementos logo aos três minutos, por lesão de Fernando Mendes. Nesse tempo não havia substituições (só surgiriam em 1970) e, quando o infortúnio batia à porta, ou a maldade dos adversários fazia mesmo mossa, a equipa atingida ficava irremediavelmente desfalcada. Mendes manteve-se em campo, mas remetido, ele que era um médio, à posição de extremo-esquerdo, fazendo pouco mais do que figura de corpo presente.
Simões conta as palavras que o treinador brasileiro Otto Glória dirigiu ao intervalo (Portugal já ganhava 1-0, golo magistral de Eusébio aos 20 minutos). Depois de ter dito a cada um como pretendia que jogassem, Otto guardou as última indicações para o número 11: “Você, guri, vai jogar como quiser”, disse o treinador. 
‘Guri’ é um termo usado no Brasil para ‘menino’, ‘rapaz’ ou ‘pequeno’. Simões era o ‘pequeno’ da selecção, não só por ser dos mais novos (22 anos, a mesma idade de Peres, apenas ultrapassados por Manuel Duarte, do Leixões, com 21) mas sobretudo por ser o mais baixo. “Eu, que tinha um 1,66 metros, depois entrei no campo como se tivesse 1,86 metros. Foi uma forma de me dizer a mim, e aos outros jogadores, que era preciso darmos todos mais um bocadinho, para substituir o que faltava.” “Otto era de primeira categoria na parte psicológica e mental”, reforça Alexandre Baptista. A galvanização funcionou, e Portugal vergou a poderosa Checoslováquia, então vice-campeã do mundo.
Conquistado o apuramento, o Mundial começou a ser preparado em casa, findas as competições internas. Para Inglaterra foram escolhidos 22 atletas. Fruto da excelente época que tivera, o Sporting foi a equipa que mais jogadores forneceu: oito, o que significa que do seu onze base só três ficaram de fora. Seguiu-se o Benfica, com sete, três do Futebol Clube do Porto e dois do Belenenses, enquanto o Vitória de Setúbal e o Leixões contribuíram, cada um, com um: Jaime Graça e Manuel Duarte, já em trânsito para o Benfica e o Sporting, respectivamente. Nenhum jogava no estrangeiro e quatro — peças nucleares da equipa — eram negros de Moçambique: Vicente, Hilário, Coluna e Eusébio... Com lugar cativo no grupo, a lesão de Fernando Mendes na Checoslováquia impediu-o de ser um dos 22, mas a federação, como explica Simões, “fez questão de o incluir, e muito bem, na comitiva oficial”.
Tal como este ano, também há meio século Benfica e Sporting disputaram o campeonato até à última jornada. O título ficou então em Alvalade. A selecção “teve um estágio apropriado”, conta Alexandre Baptista. Como Benfica e Sporting “foram prematuramente afastados da Taça de Portugal” e “o Benfica andava um bocadinho por baixo, fizeram um estágio em Vale de Lobo, que durou quase um mês”.
O acerto do estágio, que incluiu uma passagem por Ofir aquando de um jogo no Norte, também é sublinhado por Simões. O objectivo era duplo, conta: “Por um lado, havia que recuperar os jogadores do Benfica, muitos deles indiscutíveis na selecção e que tinham feito uma época para esquecer. Por outro, manter o estímulo de sucesso dos do Sporting. A convocatória foi um atestado de confiança nos jogadores do Benfica, apesar de alguns estarem de rastos, e um prémio aos do Sporting, chamados a desafiar os consagrados do Benfica.”
À partida para Inglaterra, afiança Peres, “o espírito de grupo estava extremamente fortalecido. As cores dos nossos clubes ficaram em Portugal”. Cores que eram, naturalmente, Benfica e Sporting (ou vice-versa). “Todos nos conhecíamos muito bem, e não só dentro de campo. O Mundial confirmou a relação de respeito, de estímulo e de compromisso de um grupo que foi para a selecção sem camisola [de clube] vestida”, reforça António Simões. “Era uma rivalidade sadia”, sintetiza José Augusto.
O hotel escolhido para quartel-general dos Magriços — cuja designação se deve a uma lenda contada por Camões em “Os Lusíadas” sobre um cavaleiro português do século XIV, de nome Álvaro Coutinho, apelidado de “O Magriço”, que, juntamente com 11 pares, rumou a Inglaterra para participar num torneio em defesa da honra de 12 donzelas britânicas — é uma espécie de casa de campo, perto de Manchester, de grande pacatez. Na bolsa das apostas, Portugal não suscitava especial interesse. Entre alguns jogadores, as expectativas também não eram altas. “Quando ia no avião, pensava: ‘Se passássemos a fase de grupos, era uma coisa fantástica.’ Fomos para lá sem objectivos definidos”, recorda Alexandre Baptista.
A estrutura de comando da selecção era diferente da actual, que já tem várias décadas (com excepção do Europeu de 1984, em França), em que um só homem (no caso, Fernando Santos) acumula as funções de seleccionador e de treinador. A direcção da equipa, para usar um termo contemporâneo, era bicéfala: Otto Glória era o treinador, mas a função de seleccionador estava atribuída a Manuel da Luz Afonso. Era este, de resto, quem escalava os futebolistas para cada partida. “Jogam estes!”, dizia no balneário, antes de elencar o onze, lembra Alexandre Baptista. “Nunca abdicou do seu direito de ser seleccionador”, afirma o antigo defesa do Sporting. Depois, Otto Glória dava a táctica. Era pacífica essa coexistência entre os dois comandantes da equipa? Baptista, José Carlos e Simões acreditam que sim, pois crêem que Glória (que nesse ano fora o treinador do Sporting campeão) e Afonso (dirigente do Benfica nos anos áureos dessa década de 60) falavam previamente, mas nunca os futebolistas souberam qual dos dois mais mandava.
Dos membros da comitiva guardam memórias afectivas. “Os treinadores brasileiros têm muito jeito e capacidade de comunicar. O ponto forte de Otto Glória (como o é do Scolari) era a capacidade de mobilizar e estimular. A questão do afecto era importante, e nisso o Otto era um especialista”, diz Simões. “Outras pessoas também foram importantes para o espírito de grupo, como o médico Silva Rocha, do Belenenses, e o massagista, o Manuel Marques, sempre impecável connosco, tratando-nos a todos como se tratasse um filho. Era como um deus para nós... o deus das mãos milagrosas”, afirma José Carlos.

O TEMÍVEL BRASIL DE PELÉ
Depois de três jogos particulares, todos vitoriosos — na Escócia (0-1), na Dinamarca (1-3) e em Portugal contra o Uruguai (3-0) —, a bola rolava finalmente em relvados ingleses. A estreia foi com a Hungria, uma das melhores selecções do mundo. “Para mim, foi o jogo mais difícil, pois foi o que lançou a equipa. Ganhámos 3-1, e eu marquei os dois primeiros golos”, orgulha-se José Augusto. “Apanhámos um susto. O futebol húngaro mantinha a qualidade dos grandes tempos e criou-nos dificuldades. Só não marcaram mais porque tivemos um guarda-redes superinspirado e intransponível, o Carvalho.” O guardião do Sporting, curiosamente, nunca mais jogou no Mundial, dando o lugar a José Pereira, do Belenenses, o mais velho dos Magriços, com 34 anos.
O sonho português começou a ganhar forma logo aos três minutos do jogo inaugural, com a Hungria, quando José Augusto (com Torres atrás de si) marcou o primeiro golo
Seguiu-se a Bulgária (teoricamente o adversário menos difícil do grupo) e nova vitória, por 3-0. Até que chegou o Brasil, bicampeão mundial, com os títulos de 1958 e 1962 no currículo e Pelé a reinar. Perante a surpresa de quase todo o mundo, os canarinhos saíram derrotados, por 3-1.
“O Brasil apresentou-se com jogadores consagrados, mas na fase final das suas carreiras, com menor ritmo competitivo, o que facilitou a nossa tarefa. A isso acresceu o facto de o Pelé não ter actuado nas melhores condições físicas”, escreveu José Carlos no livro “Mundial 66 Olhares”, coordenado pelos historiadores César Rodrigues e Francisco Pinheiro.
A lesão de Pelé é vista de forma diferente dos dois lados do Atlântico. Nas terras achadas por Pedro Álvares Cabral, foi uma entrada maldosa do defesa português Morais que arrumou o ‘rei’. Entre Magriços o episódio tem uma leitura paliativa. No livro já referido, a ser lançado na próxima semana, o episódio é dissecado. Na leitura de Alexandre Baptista, Pelé não recuperara “totalmente da lesão contraída no primeiro desafio, contra a Bulgária. Isso só se tornou evidente quando se magoou novamente, numa jogada que em princípio não causaria a lesão”. Já José Augusto recorda: “O Brasil acabou por jogar praticamente com um jogador a menos, pois o Pelé estava lesionado e jogou sem estar apto. E também teve o azar de sofrer uma falta do Morais na perna que se encontrava afectada. Apesar do muito que se disse e escreveu, a carga não foi maldosa, mas apenas um momento que reflectiu a forma aguerrida como o Morais jogava.”
Moléstia de Pelé à parte, os portugueses triunfaram por 3-1, com um golo de Simões (de cabeça...) e dois de Eusébio. Da crónica desse jogo, no jornal “A Bola”, fica um memorável título saído da pena de Carlos Pinhão. Aludindo às palavras de escárnio com que alguns brasileiros quiseram humilhar antes do jogo a seleção das quinas, Pinhão não foi de modas e marcou um “gol de placa”: “A terrível vingança da bola quadrada”.

O JOGO LOUCO COM A COREIA
O que “A Bola” e outros jornais pelo mundo fora (tomados de espanto) disseram do êxito de Portugal ante o Brasil ficou muito aquém do que os esperava dias depois, no rescaldo dos quartos de final, entre Portugal e a desconhecida Coreia do Norte, que acabara de dar um bilhete de volta a casa à poderosa Itália.
O jogo começou com os coreanos frenéticos e Portugal a dormir. “A equipa entrou em campo lenta e, pensava, com o jogo já ganho. Aos 25 minutos já perdíamos por 3-0”, lembra Alexandre Baptista. “O que aconteceu continua a não ser fácil de explicar. Talvez tenha sido algum excesso de confiança, porque havíamos ganho ao bicampeão mundial, o Brasil. Os coreanos eram uns atletas pequeninos e sem grande estrutura física (não tinham cara nem corpo de jogadores) e, provavelmente, não conseguimos combater o nosso subconsciente, de que o jogo estaria ganho”, conta José Augusto. “Eram jogadores de boa capacidade técnica e corriam sobretudo muito.” Mas, se os portugueses dormiram na forma, os asiáticos fizeram o trabalho de casa muito bem feito. “Estiveram dois anos a preparar-se para o Mundial, a competir no campeonato da Alemanha de Leste, sem terem ido a casa”, recorda o antigo extremo-direito. Para José Carlos, “os coreanos eram muito rápidos e, como eram quase todos iguais, nem sabíamos quem é que devíamos marcar e andámos aos papéis”.
No final da primeira parte, já as coisas estavam menos negras (2-3), pois Eusébio desatara a escrever o capítulo maior da sua lenda, com dois golos nos primeiros 45 minutos (faria mais dois até ao final). “No intervalo, o Otto falou de tudo menos de futebol”, lembra José Augusto. “Ouvimos das boas, algumas em linguagem bem vernácula. ‘Vocês, que me deram a maior alegria da minha vida quando ganharam aos meus irmãos brasileiros, estão agora a perder com uma equipa do Walt Disney? Vão lá para dentro, metam o tomate na garganta e comam os coreanos vivos’.”
A empreitada foi de todos, mas há um homem que foi maior do que todos juntos. Com quatro golos em 32 minutos, que deram uma reviravolta no marcador (José Augusto ainda faria o 5-3), Eusébio assinou a maior proeza individual numa só partida da história dos Mundiais.
“O futebol é uma modalidade colectiva, mas se não tivéssemos o Eusébio nunca teríamos recuperado. Foi o melhor jogo que vi um jogador com a estirpe do Eusébio fazer”, exulta Fernando Peres. “Ainda tenho na retina um dos golos: o Eusébio pegou na bola ainda no nosso meio campo, quase junto à linha lateral, e começou a fazer magia, levando tudo à frente, a driblar e a levar pancadaria, até que entrou na área e foi rasteirado com uma cacetada valente. Foi o Eusébio e foi a bola, foi tudo ao ar. Depois levantou-se, a coxear, pegou na bola e marcou o penálti.” “Esse jogo é um momento histórico e uma grande referência do futebol mundial. Tornou-se mítico pela marcha do resultado, pela recuperação notável de Portugal e por aquilo que foi a nossa prestação em redor do Eusébio”, analisa António Simões.
A Inglaterra, a anfitriã, foi o adversário seguinte. Mordomias para quem jogava em casa, foi permitido mudar a meia-final de Liverpool para Londres (em Wembley), o que obrigou Portugal a fazer uma viagem de comboio na véspera.
A tristeza de Eusébio após a derrota com a Inglaterra correu mundo. A estrela da selecção portuguesa e melhor marcador do torneio enxuga as lágrimas na camisola, perante o olhar de Torres (à esq.) e de Hilário (de costas), ambos em primeiro plano
“A alteração do local teve um impacto negativo, desgastando-nos física e mentalmente”, diz José Carlos. Simões lembra outro episódio: “No dia do jogo, com medo do trânsito, chegámos a Wembley demasiado cedo, o que nos obrigou a uma espera muito longa, gerando mais ansiedade.” Também no relvado os ingleses apostaram na surpresa. “A marcação implacável do Stiles ao Eusébio condicionou bastante o nosso jogo”, reconhece José Carlos. “O que ficou de mais triste foi termos perdido com a Inglaterra. Não tivemos cabeça suficiente”, confessa Alexandre Baptista. O jogo terminou com 2-1 para os ingleses, pondo fim ao sonho português. Restaria aos Magriços o jogo de consolação, para atribuição do terceiro e quarto lugares, em que Eusébio & Cª derrotaram a União Soviética (2-1).

A FRUSTRAÇÃO DOS QUE NUNCA JOGARAM
Na meia-final, alguns portugueses deram o estoiro. “O jogo marcou-me pelo cansaço”, diz Simões. Não sendo permitidas substituições, o facto de o seleccionador quase não ter rodado jogadores de partida para partida é uma pedra no sapato de alguns magriços. “Podíamos ter ido mais longe se tivesse havido um pouco mais de coragem”, considera Fernando Peres. “Havia futebolistas ávidos por jogar e que não faziam grande diferença em relação aos titulares: o Custódio Pinto, médio do FC Porto, extraordinário; o Cruz, lateral-esquerdo, fabuloso; o Lourenço [atacante do Sporting], enfim... Já não falo de mim. Houve até jornalistas que perguntaram várias vezes porque é que eu não jogava. O Simões fez um campeonato extraordinário, mas estava completamente fatigado. E o Torres chegou a pedir para não actuar, porque tinha os tornozelos inchadíssimos das pancadas que levara. O seleccionador respondeu-lhe que só não jogava se tivesse uma perna partida.”
Fernando Cruz foi outro dos que nunca pisou os relvados. Se por um lado faz uma vénia à velha máxima do futebol (“a equipa estava a jogar bem e a ganhar, e numa equipa que ganha não se mexe”), por outro tem o coração mais ao pé da boca: “É chato uma pessoa ganhar tudo em Portugal, mais duas taças dos Campeões Europeus, e depois ir ao Mundial e já saber que vai ser suplente. Enfim, fui um turista em Inglaterra”, remata, bem-disposto.
Os Magriços vieram de Londres com o terceiro lugar, mas com o título de “melhor futebol que se praticou em Inglaterra”, sublinha Peres. “Com larga projeção mediática, as televisões transmitiram todos os embates pela primeira vez”, lembra Simões.
Regressados à pátria, receberam as mais altas honrarias do Estado. Foram recebidos inclusive por Oliveira Salazar, que os felicitou pelo “excelente resultado”, recorda Alexandre Baptista. No livro em que também colaborou, Simões descreve como o Mundial serviu o regime às mil maravilhas. “O país, em virtude de uma desajustada ditadura, estava ostracizado, era observado de soslaio pela comunidade internacional. Foi o Eusébio e fomos todos nós que contribuímos para que houvesse, pelo menos por via do futebol e da nossa epopeia, um olhar simpático para este retângulo europeu tão criticado por razões de natureza política e social.”
Quando os jogadores portugueses foram dos melhores da Europa e do Mundo, o futebol ainda não distribuía os rios de dinheiro que hoje correm. Na grande equipa do Benfica da década de 60 ganhava-se, no máximo, 500 contos por ano (valor ilíquido). Destes, só quatro contos eram de salário mensal, igual para todos, pois a fatia de leão eram as chamadas luvas, pagas trimestralmente. Os prémios de jogo arredondavam o pré. O rendimento anual, referenciado a 1966, equivale, a preços atuais, a 178 mil euros, o que fica muito aquém das quantias chorudas que ganham Ronaldo, Messi e Neymar, entre muitos outros. 
Nos anos 60, os anúncios feitos por futebolistas eram pagos em géneros. José Augusto recebeu uma caixa de 12 latas de salsichas
Por explorar estavam as receitas de publicidade. José Augusto conta o seu caso. “Nunca recebi dinheiro dos anúncios e fiz vários. Um deles foi às salsichas Tobom. Como prova de consideração, recebi uma caixa com 12 latas.” Mais sorte teve Simões, já nos anos 70. Ele e o guarda-redes do Sporting Vítor Damas foram o rosto de um produto de barbear. Cada um recebeu 35 contos (menos de 10 mil euros a preços actuais, com referência a 1970). Simões ainda sabe a deixa de cor: “A minha barba é dura e difícil, mas o creme Palmolive amacia-a mesmo.”
Fernando Cruz, Alexandre Baptista, José Augusto, José Carlos, Fernando Peres e António Simões são seis dos futebolistas que representaram Portugal no Mundial de 1966, de 11 a 30 de Julho. Todos eles ficaram ligados ao futebol depois de deixarem os relvados.
Cruz esteve cerca de 30 anos nos EUA, numa fábrica de candeeiros e com uma curta passagem pela construção civil. Matou o bichinho da bola treinando uma filial do Benfica, em Newark, mas como não lhe pagavam abandonou o banco.
Alexandre Baptista é um caso raro no futebol português do século passado, com exceção de alguns jogadores da Académica: conciliou as chuteiras com as sebentas, licenciou-se em Economia e foi diretor comercial de várias empresas. Foi vice-presidente do Sporting numa direção de João Rocha, joga golfe (hoje já menos...) e bridge.
José Augusto foi treinador e chegou a dirigir a seleção principal na minicopa do Brasil, em 1972, e no Europeu de França, em 1984. Interinamente, treinou o Benfica em 1970. José Carlos acabou a carreira de futebolista no Braga. Depois ficou como treinador. Foi um dos destacados impulsionadores do Sindicato dos Jogadores de Futebol (com Simões) e dos Treinadores.
De todos os Magriços, Fernando Peres foi o que teve uma carreira internacional ao mais alto nível: foi campeão no Brasil pelo Vasco da Gama, em 1974. Em Portugal treinou várias equipas da primeira divisão. 
Simões acabou a carreira nos EUA, onde jogou sete épocas, e treinou em vários países. Foi diretor-geral do Benfica na presidência de Manuel Vilarinho. Hoje é o rosto mais assíduo dos Magriços nos ecrãs, como comentador de futebol. É o único que fez uma incursão na política, como deputado do CDS.

OS 22 MAGRIÇOS
N.º 1 Américo Lopes — Santa Maria da Feira, 83 anos; guarda-redes; FC Porto; nunca jogou
N.º 2 Joaquim Carvalho — Barreiro, 79 anos; guarda-redes; Sporting CP; disputou o jogo inicial, contra a Hungria
N.º 3 Artur José Pereira — Torres Vedras, 84 anos; guarda-redes; Belenenses; disputou os últimos cinco jogos
N.º 4 Vicente Lucas — Moçambique, 80 anos; médio; Belenenses; disputou os primeiros quatro jogos
N.º 5 Germano de Figueiredo — Lisboa (1932-2004); defesa-central; SL Benfica; disputou o jogo contra a Bulgária
N.º 6 Fernando Peres — Algés, 73 anos; médio; Sporting CP; nunca jogou
N.º 7 Ernesto Figueiredo — Tomar, 78 anos; avançado; Sporting CP; nunca jogou
N.º 8 João Lourenço — Alcobaça, 74 anos; avançado; Sporting CP; nunca jogou
N.º 9 Hilário da Conceição — Moçambique, 77 anos; defesa-esquerdo; Sporting CP; disputou todos os jogos
N.º 10 Mário Coluna — Moçambique (1935-2014); médio; SL Benfica; capitão de equipa, disputou todos os jogos
N.º 11 António Simões — Seixal, 72 anos; extremo-esquerdo; SL Benfica; disputou todos os jogos e marcou 1 golo
N.º 12 José Augusto de Almeida — Barreiro, 79 anos; extremo-direito; SL Benfica; disputou todos os jogos e marcou 3 golos
N.º 13 Eusébio da Silva Ferreira — Moçambique (1942-2014); avançado; SL Benfica; disputou todos os jogos e marcou 9 golos, tendo sido o melhor marcador do Mundial
N.º 14 Fernando Cruz — Lisboa, 75 anos; defesa-esquerdo; SL Benfica; nunca jogou
N.º 15 Manuel Duarte — Celorico da Beira, 70 anos; avançado; Leixões; nunca jogou
N.º 16 Jaime Graça — Setúbal (1942-2012); médio; Vitória de Setúbal; disputou todos os jogos
N.º 17 João Morais — Cascais (1935-2010); defesa-direito; Sporting CP; disputou três jogos
N.º 18 José Torres — Torres Novas (1938-2010); avançado; SL Benfica; disputou todos os jogos e marcou 3 golos
N.º 19 Custódio Pinto — Montijo (1942-2004); médio; FC Porto; nunca jogou
N.º 20 José Alexandre Baptista — Barreiro, 75 anos; defesa-central; Sporting CP; disputou cinco jogos 
N.º 21 José Carlos da Silva José — Vila Franca de Xira, 74 anos; defesa-central; Sporting CP; disputou os dois últimos jogos
N.º 22 Alberto Festa — Santo Tirso, 76 anos; defesa-direito; FC Porto; disputou três jogos"

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