Últimas indefectivações

sábado, 6 de dezembro de 2025

DDT — Donos Disto Tudo


"Nos últimos tempos, três assuntos ficaram a ecoar na minha cabeça. As críticas a José Mourinho por ter criticado os seus jogadores, as palavras de João Félix sobre a alegada falta de vontade séria do Benfica em recebê-lo de volta e o futuro dos nossos jovens campeões do mundo. Três temas que, à primeira vista, parecem desconexos. Talvez distantes, mas não tão diferentes na sua raiz. Vamos por partes, até chegarmos ao ponto onde tudo se encontra.
Começo por José Mourinho. No final do jogo da Taça de Portugal mostrou o que toda a gente tinha visto na primeira parte. A equipa tinha entrado a dormir. Disse-o de forma clara, como sempre fez. E imediatamente se ergueu o coro habitual de indignações. Criticar jogadores já é tratado como crime de lesa-pátria. Parece cair o Carmo e a Trindade quando um treinador diz que um atleta não se esforçou o suficiente.
E as críticas vêm sempre embrulhadas na mesma cantilena. Que um treinador não deve expor jogadores em público, que perde o balneário, que perde o respeito, que aquilo fragiliza a equipa. É a ladainha dos dias modernos. Nem sempre foi assim, e na verdade continua a não ser. Um treinador não perde o respeito quando diz a verdade. Perde-o quando tenta vender à equipa e ao público uma narrativa diferente daquela que todos viram. Perde-o quando troca a exigência pela massagem ao ego. Perde-o quando deixa de chamar as coisas pelo nome, com medo de ferir sensibilidades.
João Félix, que anda há anos a tentar demonstrar ao mundo do futebol que é um jogador de elite, passou por vários clubes e diferentes treinadores. Em todos deixou a mesma dúvida no ar, aquela sensação desconfortável de que o talento está lá, mas a consistência e a qualidade aparecem apenas a espaços. Agora decidiu dizer que o Benfica, e sublinhe-se, o seu Presidente, não demonstrou uma vontade séria em trazê-lo de volta. Uma acusação curiosa, para não dizer outra coisa.
O Benfica, leia-se o presidente, mesmo com a desconfiança de muitos adeptos, demonstrou sempre disponibilidade e esforço para concretizar o regresso de João Félix. Isto é público e notório. Se houve hesitações, não vieram da Luz. João Félix preferiu o dinheiro. É legítimo que assim tenha sido. O que já não é legítimo é tentar reescrever a história, como se o Benfica tivesse sido um espectador indiferente. Não foi.
E fica a pergunta, que vale mais do que mil comunicados. Será que optar única e exclusivamente pelo salário é a melhor decisão para um atleta que ainda procura afirmar-se no topo?
A nossa Seleção Nacional de sub-17 sagrou-se campeã do mundo. Um enorme feito. Uma enorme honra para todos os portugueses. Ainda a festa não tinha terminado e já se ouvia: será que estes miúdos vão ter futuro? Os clubes têm de apostar nestes jovens, estes jogadores são craques, os clubes têm de olhar para a sua formação. Foram algumas das afirmações e perguntas que fomos ouvindo.
Concordando que os clubes devem estar atentos e apostar nos seus jogadores mais jovens, será que é mesmo isso que tem faltado para que mais jovens talentos se consigam afirmar nas principais equipas do nosso campeonato? Será que quem mais decide a carreira destes jovens jogadores são eles próprios, os seus treinadores ou os seus clubes?
E o que têm a ver as críticas de José Mourinho e as declarações de João Félix com o futuro destes jovens craques?
Há um denominador comum. Os empresários. Esses que não gostam que um treinador faça qualquer crítica aos seus jogadores. Aqueles que dizem ao jogador para optar pelo projeto financeiro em vez do melhor projeto desportivo. Aqueles que, na minha opinião, infelizmente, mais terão a dizer sobre a carreira que terão os nossos mais recentes campeões.
Há muito tempo que o futebol deixou de ser apenas um jogo. Tornou-se uma espécie de mercado paralelo onde quem realmente manda raramente aparece nas fotografias. São os empresários, os intermediários, os consultores, os agentes de influência. Aqueles que não tocam numa bola, mas decidem mais do que muitos treinadores.
Os empresários são hoje o equivalente moderno aos barões do petróleo. Não extraem nada do chão, mas extraem milhões da ansiedade dos clubes. Não criam jogadores, mas vendem-nos como quem vende aço ou soja. E transformaram o futebol num negócio onde o tempo vale mais do que o talento e onde um passe bem negociado vale mais do que dez golos marcados.
É por isso que, nos últimos tempos, temos assistido a um fenómeno quase surreal. Treinadores que planeiam épocas e projetos que duram o tempo de um almoço, diretores desportivos que passam mais tempo ao telefone do que a ver jogos e jogadores que mudam de clube com a mesma frequência com que mudam de penteado. Tudo isto porque alguém, numa agência qualquer, decidiu que aquela transferência era o momento certo para maximizar o lucro. O clube, esse, fica para segundo plano. O adepto, para terceiro. A identidade, para último.
Um jovem de 17 anos faz dois jogos bem conseguidos e, antes que o miúdo aprenda a fazer o terceiro passe seguido sem nervos, já tem cinco agentes interessados, três reuniões marcadas e um empresário que jura que está a pensar só no futuro do atleta. O futuro, claro está, mede-se em percentagens, prémios de assinatura e comissões que fazem corar qualquer gestor financeiro.
O problema é que esta teia não é apenas um efeito secundário do futebol moderno. É o próprio motor do sistema. Os empresários controlam carreiras, influenciam balneários, decidem contratações, ditam rescisões, condicionam treinadores e pressionam dirigentes. Há clubes que contratam porque precisam e há clubes que contratam porque alguém lhes disse que precisavam. E essa diferença, no fim, paga-se com pontos perdidos e épocas arruinadas.
Podíamos achar que isto é apenas parte do jogo. Que sempre existiram intermediários. Que sempre houve negócios opacos. Mas o que existe hoje é diferente. É uma estrutura que funciona acima dos clubes e que, em muitos casos, os substitui. E quando percebemos que há empresários que têm mais poder de decisão do que presidentes, mais influência no plantel do que treinadores e mais informação interna do que muitos funcionários, talvez seja altura de parar de fingir que é normal.
A pergunta não é como chegámos aqui. Isso já todos sabemos. A pergunta é como saímos daqui.
O que me assusta não é o empresário competente que defende o seu jogador. Isso faz parte. Assusta-me o empresário que controla vários clubes em simultâneo, que faz negócios consigo próprio, que coloca jogadores onde lhe convém e que depois aparece a dizer que o futebol precisa de transparência. Assusta-me a facilidade com que alguns dirigentes se ajoelham perante telefonemas. Assusta-me a normalização da dependência. E, acima de tudo, assusta-me a passividade com que isto tudo é aceite.
No meio disto, estão os nossos miúdos de 17 anos. Chegaram ao topo do mundo. Serão agora empurrados para um sistema onde o talento é só uma parte da equação. E onde tudo o resto pesa mais do que devia."

Sem comentários:

Enviar um comentário

A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!