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quarta-feira, 13 de maio de 2020

O adeus do mágico bêbado

"Abril de 1970. O Benfica foi a Zagreb participar na festa de despedida de Stjefan Lamza, um dos melhores jogadores jugoslavos de todos os tempos, marcado pelas depressões e pelo vício do álcool. Um abraço de solidariedade pintado de vermelho.

Lamza foi uma personagem extraordinária do futebol mundial, e eu gosto de escrever sobre ele. Além disso, o Benfica ficou a fazer parte da sua vida quando foi convidado pelo Dínamo de Zagreb, clube no qual passou os grandes anos da sua carreira, para ser a estrela da sua noite de despedida.
21 de Abril de 1970. Três anos antes, Lamza, tinha sido a grande figura do Dínamo que venceu a Taça das Cidades com Feira, depois Taça UEFA e, hoje em dia, Liga Europa. Agora jogava no Châteauroux. Ou, melhor, arrastava-se. Um problema grave na espinha dera-lhe cabo do sentido de equilíbrio. Tudo porque Lamza foi um bêbado inveterado.
Às 19h00 em ponto, o Dínamo de Zagreb - Benfica teve início.
Aos 39 minutos, Lamza fazia o 1-0. Afinal, a noite era sua.
O estádio estava cheio. Mais de 60 mil pessoas. O Benfica tinha as suas vedetas para apresentar, sobretudo Torres, Jaime Graça, Simões e Eusébio, todos titulares da selecção nacional que atingiu o terceiro posto no Campeonato do Mundo de 1966, em Inglaterra.
Mas havia qualquer coisa a prender os movimentos dos encarnados. Meio apáticos, não reagiram com ganas ao fulgor de um adversário que parecia ansioso por fazer render a sua festa. Todos estiveram de acordo: a vitória do Dínamo foi amplamente merecida.

A reacção encarnada
Um dos enviados-especiais da imprensa portuguesa a Zagreb escreveu: 'A derrota da equipa do Benfica aceita-se perfeitamente, muito embora os portugueses possam lamentar-se da falta de sorte que atingiu a equipa a meio do segundo tempo. Mesmo que cada equipa tenha dominado 45 minutos, o Dínamo foi muito mais objectivo e perigoso no seu período do que o Benfica o foi na segunda parte. Podem os benfiquistas lamentar-se de ter visto uma bola sua bater na trave, através de José Torres, mas o facto não fez esquecer os seus débeis primeiros minutos'.
No segundo tempo, os encarnados trataram de puxar pelos galões. Tinham sofrido o 0-2 por Lalic, apenas dois minutos após o golo de Lamza, e foram em busca da sua identidade. Artur Jorge e Torres, apoiados por Simões e Jaime Graça, movimentaram-se na tentativa de surpreender os centrais contrários. Eusébio parecia cansado. Mas, de tempos a tempos, atirava-se como uma fera pelo meio-campo jugoslavo, tal como no lance em que, depois de ultrapassar dois opositores, chutou a milímetros do poste uma bola que parecia levar fogo na cauda como um cometa.
Lamza tivera a sua festa e tivera Eusébio na sua festa. Era um homem contente, ele que destruíra a sua vida por causa do álcool. Confessou, mais tarde, numa entrevista, que bebia umas goladas de rum logo ao acordar. Precisava de sentir a força da bebida para ter coragem de sair de casa e enfrentar as terríveis depressões que o ensombravam.
Na noite em que o Dínamo de Zagreb bateu o Eintracht Frankfurt por 4-0, virando o 0-3 da primeira mão, os jogadores foram comemorar a um bar dos arredores da cidade. Lamza bebeu este mundo e o outro. Secou a adega do bar de tal forma, que os companheiros decidiram fechá-lo num quarto à chave para que não cometesse mais disparates.
Foi o fim de Lamza. Irritado, saltou pela janela, bateu com a cabeça no lajedo, quebrou vários ossos do crânio e ficou com uma lesão na espinha que lhe retirou para sempre a capacidade de agir sobre o seu equilíbrio e controlar muitos dos seus gestos. Fim triste para um jogador que estava no topo das suas faculdades e, em seguida, se limitou a jogar quase por piedade em clubes de pequena dimensão.
Stjepan Lamza é uma das personagens do futebol que me fascinam. Um daqueles heróis sem estrutura que mergulham no mais fundo da sua infelicidade. A bebida levou-o a estados de loucura impossíveis de prever. No dia em que disse, finalmente, adeus ao futebol, o Benfica estava lá. Como que oferecendo um abraço solidário a um homem que o futebol perdeu com tristeza."

Afonso de Melo, in O Benfica

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