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domingo, 26 de abril de 2020

“O futebol não se ensina, aprende-se” (ou a responsabilidade de um treinador: ser o 25 de Abril de cada um dos seus jogadores)

"O título do texto é uma frase roubada ao genial professor Vítor Frade que, de forma simples e numa linha, consegue teorizar sobre um tema tão complexo como a formação de jovens jogadores. Para quem tem inquietações constantes com este tipo de questões, é uma tormenta diária a procura por respostas à pergunta: “Como é que posso ajudar estas crianças a transformarem-se em jogadores?”
A pergunta não tem uma resposta certa, mas acredito que o caminho passa por lutar contra o meu ímpeto de querer ser importante, passando assim a dar importância ao fundamental; devem ser os jovens a seleccionar o seu caminho, e a criar o seu mapa dentro do território definido pelas regras de um jogo de futebol. Não se trata de menorizar o trabalho do treinador – pelo contrário -, é valorizá-lo, tão raros são, daqueles que conseguem fazer o jogador trabalhar para que desenvolva o factor mais diferenciador do futebol: a criatividade.
De certa forma, é relativamente fácil melhorar um jogador nas capacidades condicionais e nas qualidades técnicas, mas o que é cognitivo e sensitivo não se desenvolve da mesma forma mecânica das orientações programáticas que nos ensinaram durante o nosso percurso de vida. O caminho não é objectivo, como a estrutura do nosso modelo de ensino, que de forma simpática apelidamos de pedagógico, enquanto ele nos guia à memorização.
Há vários problemas de fundo que contribuem para isso, e um deles é, sem margem para dúvida, a forma como enquanto crianças não nos ensinam a pensar. Como tal, por sermos seres miméticos, também nós adoptamos esse método quando nos compete ajudar outros a aprender, e não é fácil lutar contra esse problema de fundo que surge em surdina na forma de responder às inquietações dos mais pequenos, ou de, em larga medida, nem deixar que as dúvidas apareçam. Como nos deram fórmulas para resolver tudo, como pensaram tudo por nós, muito facilmente abraçamos a escravatura dos conhecimentos objectivos do factual e do mecânico, quando é a criatividade que permite dar respostas à problemas inéditos. Portanto, a criatividade é a competência essencial do progresso e para a valorizar temos de começar a pensar, de forma séria, noutras estruturas de ensino que nos permitam estimular esse tipo de qualidade.
Dizemos que o futebol é um jogo caótico, concordámos que é imprevisível e que não há situações que se repetem, e depois prescrevemos aos miúdos uma data de princípios e conceitos como se pudéssemos de antemão prever as circunstâncias e com isso programar um modo exacto de reagir. É este um dos maiores problemas do treino: a necessidade de se perceberem resultados no imediato. O treinador planeia cada exercício no detalhe para que possa ter como consequência daquele trabalho de exercitação resposta imediata dos jogadores, conforme o objectivo que traçou. Em cada condicionante, em cada tempo de exercitação, em cada pausa, todas as respostas estão calculadas. O jogador vai fazer isto nesta situação, aquilo naquela, e outra coisa qualquer noutra. Tudo está prescrito e, por isso, limitado. Não há espaço para a criação, para a liberdade, para a improvisação. 
Dennis Bergkamp, um dos jogadores mais criativos do futebol moderno, escreveu o seguinte sobre os treinos que observa actualmente: “Eles sabem exactamente o que fazer em todos os exercícios, de tal forma que não são capazes de pensar por eles. Os treinadores dão-lhes as respostas todas e eles não têm de se esforçar por resolver nada com a própria cabeça – isso é um problema. Quando surge uma situação nova eles olham para o treinador à espera de que este lhes diga como é que resolve o problema, e o treinador sente-se importante por demonstrar conhecimento ao jogador. Isto é 'overcoaching'. É demasiado, e acredito que ultrapassa o limite da influência do treinador no treino e no jogo. Deixem-nos ser livres e criem os ambientes para que eles possam ser únicos e não clones”. 
Quando o jogador procura por respostas, não é de respostas que precisa, mas sim de dúvidas. Responder às questões que os jogadores vão tendo durante o jogo, durante o treino, limita a cabeça dos pequenos. Eles precisam é de informação! Informação que os ajude a perceber o contexto e que em conjunto as suas capacidades os ajude a resolver o lance. A maior necessidade é a de começarem a antecipar e imaginar o que se pode fazer para que consigam marcar ou evitar o golo, e esta coisa aparentemente simples, o colocar dificuldade ao jogador, acaba por ser a mais difícil de se colocar em prática no treino; dificuldade que o ajude a evoluir nos aspetos em que ainda é pouco desenvolvido, dando-lhe a liberdade para escolher não entre A e B mas entre A e outra coisa qualquer que lhes surja.
Pegando em situações práticas, quando os meus jogadores estão numa situação em que recebem de costas, eu digo-lhes: "Se estás apertado, toca de frente, se tens espaço, enquadra". No futebol, como em muitas outras actividades, o ensino é encarado como uma forma de transformar os aprendizes em máquinas para resolver determinado tipo de problemas, e o maior problema dessa forma de ensino-aprendizagem surge quando não existem problemas tipo. Se o jogo não tem situações que se repetem, por que motivo devo eu ter a presunção que existem apenas duas respostas para os jogadores quando enfrentarem esta situação? Por que motivo limitei eu a quantidade de respostas?
Imaginemos que um defesa faz um passe vertical para um médio sem oposição e, no mesmo instante, há outro médio que estando mais recuado inicia a marcha e que se aproxima daquele que vai receber a bola. Quando a bola chega ao primeiro médio, ele já está suficientemente próximo do colega e em movimento. De acordo com a ideia que prescrevi de que sem pressão ele deve enquadrar, a hipótese de esse jogador jogar de frente no colega que está em movimento é um erro. Pese embora o tempo que ele próprio demoraria a enquadrar e a ganhar embalo tornar mais rápido aproveitar o espaço através do passe para o colega que vem de frente, e já embalado. A minha ideia de que, com espaço, um jogador se deve enquadrar assim que recebe estava, portanto, errada. Pensemos também em quantas vezes o avançado ou médio que está de costas, e pressionado, simula que vai entregar, dando a entender ao seu marcador que não vai rodar, e depois roda, surpreendendo-o?
O problema destes supostos por mim idealizados é que não contemplam a imprevisibilidade. Se, sempre que estas condições se verificassem, os jogadores agissem de acordo com as minhas soluções, os defesas saberiam de antemão o que eles iriam fazer e nunca seriam surpreendidos. Ora, o futebol não é nada disto.
E o problema não é do conhecimento que tenho do jogo ou dos princípios de jogo que eu idealizo, mas sim da forma como traduzo essa informação para influenciar as minhas crianças. É uma espécie de síndrome de Mourinho. O fenómeno Mourinho convenceu muita gente da ideia de que um treinador é responsável por tudo o que acontece dentro do relvado. E os treinadores começaram a formar-se a julgar que o seu trabalho consiste em conseguir que os seus miúdos repliquem as suas ideias. Há muita gente que ainda não percebeu que ser formador não é nada disso. O principal objectivo do treinador não é dar respostas; é criar dúvidas. Os jogadores não precisam de decorar comportamentos; precisam de alargar os horizontes cognitivos e de desenvolver o espírito crítico.
E sim, é possível criar problemas no treino para resolver este tipo de problemas dando-lhes o problema e não a solução. Por exemplo: quando um dos meus jogadores joga com os do escalão acima, vai ao choque, perde e cai. Depois disso ele vai ajustar a resposta a esse tipo de lance, e vai tentar arranjar estratégias para evitar o choque sempre que recebe. Afinal, ninguém gosta de ir ao chão, não é? Nos lances seguintes ele já não pisa e espera pelo adversário, já não encosta para proteger a bola. Solta mais depressa, antes de receber já viu para onde deve seguir, procura colocar-se de forma a receber com espaço, movimenta-se para desequilibrar sem bola e também usa os colegas para tal efeito. Pode até optar por tentar segurar e rodar, por tentar tirar vantagem do ímpeto com que os jogadores mais velhos abordam os lances, mas como não recebe a bola dos mais velhos, por estes não terem ainda confiança na sua capacidade para dar o melhor seguimento ao lance, cuida de cada bola que recebe como se fosse a última. Porque se falhar é bem provável que seja mesmo a última, e que passe o jogo todo sem tocar nela.
E quais foram as condicionantes desse exercício de treino? Quais eram as regras? A importância do treinador é esta: criar contextos favoráveis ao crescimento e ao desenvolvimento do jogador; marcar o território e deixar que seja o jogador a escrever o seu mapa; ajudar a criança a descobrir o caminho para resolver um problema que ele identificou.
No fundo, trata-se de não cair na preguiça de jogar o que o jogo dá, mas sim de pensar que o jogo dá o que jogamos. De ser proactivo na procura de soluções para influenciar o jogo em benefício próprio. Isto é, como queres ser forte a aproveitar o espaço com ataques rápidos se és lento e não és extraordinário no 1x1? Mais, tu percepcionas o contexto de forma diferente de todos porque o fazes de acordo com as tuas capacidades. Ou seja, numa mesma situação em que um jogador com boa capacidade de passe longo percepciona uma oportunidade de aproveitar o espaço nas costas do adversário isolando um colega, outro jogador percepciona a falta de espaço no centro de jogo e de linhas de passe próximas e joga para trás.
Afinal o que é que o jogo dava? Aproveitar o espaço nas costas ou conservar a posse de bola por não haver linhas de passe? Ambas as decisões foram as mais acertadas e estamos a falar da mesma situação. O jogo não dá só uma coisa a cada momento, dá uma infinidade de coisas porque as circunstâncias são ímpares, pelo que é impossível o treinador preparar os jogadores com respostas condicionadas para a esmagadora maioria dos momentos.
Até quando se trata do mesmo jogador, há tanta coisa que o pode influenciar naquele momento, como fadiga, momento de maior ou menor confiança nas próprias capacidades e nas capacidades dos colegas, percepção da qualidade do adversário, resultado, estado do campo, clima, vícios de aprendizagem, etc, que é impossível definir, à priori, com precisão o que o jogador deve fazer.
Se não estimularmos a criatividade da criança, estamos a coartar a criatividade do jogador. Se os ensinamos a ver futebol pela ficha técnica e estatística, eles não podem perceber o que é intraduzível por números ou dados objectivos, quer sejam as subestruturas através das quais se atinge determinado fim, ou aquilo que poderia ter acontecido se em vez de o gajo ir à linha e cruzar tivesse procurado o colega livre com um passe em vez de um charuto para o centro da área.
Resumindo, o jogador consegue analisar tanto melhor os processos individuais ou colectivos quanto mais capaz for de os perspectivar, não só perante o resultado obtido, mas, e sobretudo, perante as outras possibilidades que, a qualquer momento, se apresentem. Também aqui é preciso saber ver que está nas entrelinhas.
As maiores dúvidas deste exercício estarão, porém, na ausência de resultados imediatos, que posso não vislumbrar de forma óbvia ao final de cada época, bem como na falta de espírito crítico que alguns meninos possam não desenvolver. Sobre o segundo ponto, também ele é consequência de um treino que estimula as inquietações mais do que dá respostas. Questionar os jogadores sobre as suas ações obriga-os a reflectir sobre a sua prática. Essa é uma forma de criar necessidade de ir atrás e procurar os porquês do sucesso ou insucesso dos seus lances, e dos lances de outros que o rodeiam (colegas, adversários, ídolos, etc). Quanto ao primeiro ponto, o único consolo é o de que a evolução não se faz de um dia para o outro. Sabemos que o ritmo evolutivo e de aprendizagem é lento e gradual, e apenas passados muitos anos conseguimos perceber a influência dos primeiros anos de aprendizagem.
Assim como a Revolução dos Cravos foi o início de uma sociedade que levou muitos anos a organizar-se para chegar onde está hoje, cada treinador tem a responsabilidade, ou, se quiserem, a possibilidade de ser o 25 de Abril de cada um dos seus jogadores. Revolucionar a vida desportiva da criança de tal forma que ela aprenda o valor da liberdade, da liberdade criativa, e a utilize no futuro para se distinguir dos outros jogadores.
Por fim, deixo umas linhas do Nuno Amado, que nunca treinou uma equipa de futebol, mas que consegue intuir mais e melhor sobre treino, sobre formação, sobre aprendizagem e sobre criatividade do que muita gente do meio; talvez por ele ser também um produto da liberdade criativa.
"A matemática, por exemplo, ensina-se nas escolas de forma convencional. Os alunos são incentivados a identificar o tipo de problema e a aplicar uma determinada fórmula (que decoraram previamente) para o resolver. Aqueles que são bons nas duas tarefas têm geralmente pontuações altas. Mas há muitos matemáticos que criticam este método de ensino. O prejuízo, para mim, é óbvio: preparam-se os alunos para um determinado conjunto de situações (e até conseguem que alguns alunos sejam bons a resolvê-las), mas limitam-lhes a capacidade de responder a situações imprevistas. E esses alunos, por melhores que sejam a resolver exercícios, nunca serão matemáticos de excelência. Os melhores são aqueles que aprenderam a resolver os problemas pensando neles, e não por estímulo-resposta. Os grandes génios da matemática são justamente aqueles que não desenvolveram as suas competências desta maneira, são os que, lidando com os problemas de forma mais livre, desenvolveram a criatividade pela necessidade de lhes responder de uma forma não-condicionada. Isto devia fazer reflectir as pessoas. No fundo, há três hipóteses:
1) ensinar os jogadores a agir segundo princípios, e ficar com jogadores com meia-dúzia de ideias teóricas na cabeça;
2) não fazer nada, deixá-los assimilar instintivamente o que houver para assimilar, e ter a sorte de ficar com dois ou três jogadores competentes, no máximo;
3) procurar oferecer os estímulos para que eles, pela própria diversidade e complexidade desses estímulos, aprendam a desenvencilhar-se, assimilando o que dificilmente assimilariam de outra maneira.""

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