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domingo, 26 de abril de 2020

Para um nova pedagogia do corpo

"Uma oposição feroz e desgastante a uma ideia de corpo, como raiz, como princípio donde brota o próprio espírito, mostra bem o ostracismo a que se votou uma explicação do ser humano, como uma unidade integral, ou uma totalidade, pois que foi no dualismo de duas substâncias diferentes, corpo(matéria)–alma(espírito), que se descambou, ao longo dos séculos. O dualismo corpo-alma despontou e avançou, na filosofia grega, com Platão (427-347 a.C.), filho de uma das famílias mais ricas e aristocráticas de Atenas. Redigiu, já idoso, os 36 diálogos de que é autor. Neles, a personalidade de Sócrates tem lugar relevante. Basta dizer que o seu nome figura em todos os diálogos platónicos, com excepção das Leis. Entre os escritores de maior valia que, na antiguidade grega, de Sócrates se ocuparam, julgo dever distinguir-se Aristófanes, Xenofonte, Platão e Aristóteles. No Fédon, um dos diálogos, Platão é explícito: “A alma é o que mais semelhança tem com o que é divino, imortal, inteligível, uniforme, indissolúvel”. E, porque a alma e o corpo se fundiram no mesmo ser, “cumpre ao corpo, por natureza sujeitar-se e ser governado e à alma dirigir e dominar”. A ginástica, nos gregos, não significava especial respeito pelo corpo. A saúde mostrava, antes do mais, que o corpo se encontrava em condições ao pleno esplendor da alma. Caso contrário, um corpo débil e anémico tornava-se no empecilho maior à vida superior do espírito. Na Idade Média, o dualismo platónico alma-corpo continuou, através da filosofia de Santo Agostinho (354-430), um dos grandes responsáveis pela elaboração e propagação do cristianismo, desde a Idade Média até aos nossos dias. Demais, o imperador romano Teodósio desferiu o “golpe de misericórdia” na ginástica e no desporto, gregos, quando proibiu a realização das Olimpíadas, em 393. Para ele, o cultivo do corpo podia levar ao esquecimento dos valores da alma. E toda a educação passou a confinar-se a uma tarefa puramente intelectual. No entanto, durante a Idade Média, a Igreja Católica proibiu a dissecação de cadáveres, pois que “o olhar humano não deve fixar-se em regiões que Deus nos ocultou”.
Depois dos gregos, nada surgiu de tão interessante, na história da cultura ocidental, ao desenvolvimento das práticas corporais, como o De humani corporis fabrica, de Andreas Vesalius (1514 - 1564) e De Arte Gymnastica, de Jerónimo Mercurialis (1530-1606). Vesálio ousou desafiar os preconceitos e os hábitos estabelecidos (muitos dos quais se baseavam na obra de Galeno) sem ter sofrido qualquer recriminação ou condenação públicas. Sabe-se também que, “às escondidas”, Leomardo da Vinci (1452-1519) conseguia cadáveres, para os estudos de anatomia, que serviam de base científica às suas obras asrtísticas. A Itália deslumbrava, então, todos os espíritos cultos, com especial relevo para Florença, onde viveram Dante e Petrarca. Os Médicis reuniam à sua volta as inteligências mais brilhantes do seu tempo. Mercurialis publicou, em Veneza, em 1569, o seu De Arte Gymnastica. Trata-se de uma cuidadosa, rigorosa e exaustiva sistematização das fontes antigas, então acessíveis, dos exercícios físicos sistemáticos. Mas foi o dualismo antropológico caretesiano, que percorreu, triunfante, toda a modernidade, chegando mesmo com foros de veracidade, designadamente na medicina e na educação física, até meados do século XX. Hoje, qualquer pessoa, medianamente informada, aceita sem surpresas que, “por mais surpreendente que pareça, a mente existe dentro de um organismo integrado (…). A mente teve primeiro de ocupar-se do corpo, ou nunca teria existido” (António Damásio, O erro de Descartes, Europa-América, Lisboa, p. 18). O dualismo corpo-alma, onde o “cogito” é a celebração do espírito e da sua superioridade em relação ao corpo, foi rejeitado, principalmente, pelo panteísmo de Bento de Espinosa (1632-1677), por Maine de Biran (1766-1824), que anuncia já o estatuto subjectivo do corpo próprio, a partir da experiência do movimento, e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) que nos ensina: “perceber é tornar presente qualquer coisa, com a ajuda do corpo”.
O dualismo antropológico cartesiano foi continuado indelevelmente pelo médico La Mettrie (1709-1751) que fez do animal-máquina de Descartes a inspiração do seu L’homme-machine. Para Descartes, os animais, porque não tinham alma, não passavam de puras máquinas. La Mettrie, neste seu livro, e no livro seguinte, O homem mais do que máquina, advoga a inexistência da alma humana e que os homens eram também simples máquinas, conjuntos de engrenagens, materiais tão-só, sem o complemento de qualquer substância espiritual. La Mettrie foi o médico mais famoso do Iluminismo. E a sua concepção organicista e mecanicista do homem-máquina foi conhecida pelos homens cultos do seu tempo. E levou, muitos deles, a transformarem-se em afervorados materialistas que assim diziam; “somos máquinas, mas máquinas programadas pela natureza para o exercício da liberdade”. De facto, somos o nosso corpo-máquina e o nosso corpo-máquina é matéria, nada mais do que matéria: aí está o radical fundante da ciência e da filosofia de La Mettrie. No entanto, a sua tese da continuidade entre o homem e o animal está sendo cabalmente confirmada pela biologia hodierna. O genoma da mosca drosófila tem cerca de 15 000 genes, enquanto o genoma humano só tem aproximadamente 30 000. O genoma dos primatas superiores é semelhante ao humano, em mais de 90%. Não se comprovou ainda a tese de La Mettrie de que os papagaios podem, perfeitamente, dialogar com o ser humano, através de uma conversa racional, mas aceita-se que a comunicação homem-gorila é possível. Num ponto havemos de convir com La Mettrie: a dependência da mente, em relação ao cérebro, parece insofismável. Para mim, todavia, há um excesso infinito de ser, na alma. Por isso, dependendo embora do corpo, somos livres! O corpo e o movimento constituem o primeiro momento da vida humana: o sujeito, antes de conhecer, procura e sente e vive, com o seu corpo. Lembro-me, amiúde, da frase de Teilhard de Chardin: “a matéria destila espírito”. Para Kant, a Ginástica é a educação do que, no homem, é natureza. Só que a natureza e o espírito formam, no homem, um todo indecomponível. E assim a matéria destila espírito e o espírito revela-se como a personalização da matéria…
Porque é um “ser de carências”, o ser humano é um “ser práxico”, ou seja, o seu movimento intencional não pode limitar-se unicamente ao desporto e à educação desportiva. Não é difícil acolher a ideia de que o desporto é vida, mas a vida não é desporto tão-só. Não deixando de tecer um comentário de ordem pessoal, mas de incidência pedagógica - sempre que teorizo a ciência da motricidade humana, me indago: se a motricidade é, antes do mais, movimento, quais os tipos de movimento que este paradigma pode albergar? Se bem penso: todos os movimentos humanos, susceptíveis de aprendizagem e que, pela transcendência, obedeçam ao imperativo de Hans Jonas: “Age de tal modo que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana sobre a terra” (Hans Jonas, Le Principe Responsabilité, Cerf, Paris, 1997, p. 37). Assim, nas disciplinas de um curso de motricidade humana, tem de encontrar-se mais do que anátomo-fisiologia, biomecânica, bioquímica, matemática e algumas das últimas aquisições da tecnologia, pois que, no corpo, são sempre visíveis fatores de ordem cognitiva, afectiva, social, política e religiosa. O ser humano não se esgota na interrogação: corpo ou espírito? – porque é corpo e espírito e natureza e sociedade e… movimento imparável de transcendência! Porque já trabalhei num departamento de futebol altamente competitivo; porque mereci a confiança e, nalguns casos, até a amizade de alguns treinadores desportivos – posso adiantar, sem receio, que reduzir a motricidade humana (e até a chamada “educação física”) à aprendizagem do desporto significa que nada se entendeu ainda sobre o significado do “corpo em ato”, do movimento humano e do movimento intencional da transcendência. Quais os grandes objectivos da ciência da motricidade humana? Criar um paradigma novo que fundamente o estudo do movimento humano e da intencionalidade e da transcendência que, nesse movimento, se descobrem; que se estude também as aprendizagens motoras, em quatro dimensões: a físico-biológica, a cognitiva, a sentimental e a axiológica.
A necessária teoria integradora encontramo-la na ciência da motricidade humana e as aprendizagens,que dela necessariamente decorrem, nas problemáticas educacionais e educativas, presentes no ato de desvelar conhecimentos e não meras informações. Entrámos na Sociedade do Conhecimento. Passámos de um saber fragmentado, em migalhas, pulverizado num mundo de especialidades, a um mundo holístico ou sistémico , mas onde se ignora aquela interioridade donde poderá divisar-se o sentido da vida. Se a “noosfera” (e agora ressoo Teilhard de Chardin) se apronta para ser uma “noogénese”, ou seja, um processo de crescimento espiritual, aliás o que resta da Evolução - o próprio corpo e toda a motricidade humana deverão surgir como um dos aspectos da humanização progressiva da Humanidade. “Muitos autores vêem hoje, com júbilo, chegar o momento abençoado do tempo pós-biológico (Moravec) ou pós-evolucionista (Stelarc), pós-orgânico, etc., em suma, do tempo do fim do corpo, este sendo um artefacto passível de ser danificado da história humana, que a genética, a robótica ou a informática devem conseguir reformar ou eliminar” (David Le Breton, Adeus ao Corpo, Papirus, Campinas, 1999, p. 16). Mostro-me atónito, quando vejo tanta gente, de formação universitária, ter cedido à moda “de certas correntes da Inteligência Artificial, que negam qualquer importância ao corpo, para tornar o homem um puro espírito-computador, o body builder reafirma, com o mesmo radicalismo (ou ingenuidade), o dualismo entre o corpo e o espírito, apostando no primeiro como uma forma de resistência simbólica, para restaurar ou construir um sentimento de identidade ameaçada. Transforma o corpo em uma espécie de máquina, versão viva do andróide” (pp. 40/41). Eu sei que a nossa visão de algo, de qualquer fenómeno, não passa de simples opinião, pois que sou um “ser de carências”, um ser de limites. Mas, porque situado entre o finito e o infinito,, sentindo um anseio imparável de transcendência, ou superação. A dialéctica finito-infinito clarifica-me a desproporção entre o que sou e o que desejo ser.
Mas, tudo isto, sem prescindir do corpo, porque é pelo corpo que eu percebo e me percebo e percebo este anseio de transcendência das minhas carências… rumo a um Absoluto invisível mas evidente. Portanto, é pelo corpo e em movimento porque, pela transcendência somos, em todos os momentos, uma tarefa a cumprir, que eu tomo consciência que não sou objecto da História, mas sujeito criador e construtor da própria História, que não sou reflexo do que me rodeia, mas projecto de um mundo possível – que eu encontro afinal o sentido da vida! “É este homem que se define como um ser de projecto, um ser de possibilidades e explorador de possibilidades e sentidos e que, como tal, não se encerra na sua individualidade, mas abre-se ao devir e à alteridade, isto é, a outros tempos e a outros homens” (Eunice Nascimento , “A Dimensão Filosófica-Antropológica da Utopia em Paul Ricoeur – repercussões na filosofia da educação”, in AA VV, Da Ética à Utopia em Educação, Edições Afrontamento, Porto, 2004, pp. 204 ss.). José María Cagigal (1928-1983), que foi director do INEF de Madrid e é hoje nome cimeiro da história da educação física, tentou, no seu tempo, uma nova teoria da educação física, a qual fez do seguinte princípio o seu principal fundamento: “En contra de la línea educativa tradicional, considera al hombre corporal como la concepción más integral del hombre” (in AA VV, Investigación Epistemológica – el campo disciplinar en Educación Física, Consejo Superior de Deportes, Madrid, 1997, p. 61). A redução do corpo a mera virtualidade, ou a máquina tão-só, deixa a educação física, deixa a motricidade humana, sem uma perspectiva de fundamentação. Quando a ciência, ou a filosofia, perguntam pela motricidade humana e as especialidades que a compõem, perguntam inevitavelmente pelo corpo. Não conheço outro factor de individuação. A exploração do possível, pela transcendência, nega toda e qualquer espécie de determinismo. É o próprio corpo a dizê-lo…"

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