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domingo, 15 de março de 2020

O nosso medo e o medo dos outros

"Saúde e política. Recordo uma frase de Demóstenes para os Atenienses: «Em vez de vos aguardar prefiro salvar-vos».

1. E episódio do basquetebolista da NBA que há poucos dias troçou do excesso de receios dos outros e da comunidade, tocando ostensivamente com a mão na mesma em todos os microfones dos jornalistas ali presentes e simulando tossir para cima de objectos e pessoas, é revelador de um fenómeno que ainda há poucos dias estava em movimento. Não havia apenas o desvalorizar da ameaça do Covid-19, mas também um desrespeito pelo medo dos outros.
Em situações de doenças contagiosas não estamos num combate um contra um. Não é uma luta de boxe ou de karaté, não é: doença de um lado e doente do outro - doente, claro, ajudado pela incrível medicina. Não é disso que se trata agora, com o Covid-19. Estamos num tipo de combate bem diferente.
Nas doenças contagiosas a luta é de todos contra a doença; não é um duelo privado. Ninguém pode individualmente vencer uma doença contagiosa. E daí este desrespeito pelos medos dos outros ser absolutamente inaceitável. Um herói só é herói quando coloca, exclusivamente, a sua vida em risco por amor a outra pessoa ou a uma ideia qualquer (e podemos sempre discutir, de acordo com as condições e contexto, se o que se faz é um acto heróico ou apenas uma tontice vaidosa). Mas ser herói não é, em situação alguma, pôr em risco os outros. Um acto que não tem em conta os outros, nunca poderá ser heróico. É simplesmente não civilizado, não civil. Não se trata já de uma questão de gentileza ou sequer de educação: um acto que troça com o medo da comunidade, ou que troça apenas de um só individuo, é um acto mais ou menos reles.
O medo é individual e, para cada situação ameaçadora, define diferentes comportamentos e atitudes. Calibrar o medo e as acções dos outros pelo meu medo (maior ou menor) ou pelas minhas acções é partir do princípio de que o mundo sou eu, eu, eu eu, eu.
Este euísmo, nestes dias de urgência e cuidado com o outro, é absolutamente tonto.
Se não respeitamos o medo do outro, vamos respeitar o quê? Tantos discursos sobre a identidade e este também exige ser feito: cada pessoa tem direito aos seus medos; cada pessoa tem direito a poder definir uma intensidade, maior ou menor, do seu medo, das suas precauções. Eu respeito a tua saúde e a tua doença. E ainda, antes disso: eu respeito o teu medo - frase que tem de ser dita e repetida.

2. Saúde mental, sim, e saúde física; saúde dos órgãos e também saúde do pensamento e não apenas dos órgãos do pensamento. Pensar saudavelmente.
Ernst Junger, um filósofo alemão, escreveu em O Passo na Floresta: «Já vimos gente, a quem os médicos abanaram a cabeça, recobrar a saúde, mas nunca alguém que tivesse renunciado a si próprio».
A saúde sim, em certos casos, como resultado de uma firmeza. Mas outros, infelizmente, não há firmeza que seja suficiente. A firmeza, a vontade e o carácter por vezes lutam contra uma biologia má e rápida demais nessa forma de exercer a maldade. O Covid-19 como exemplo disso: junta velocidade e violência sobre o organismo humano. De facto, está em movimento o ataque de um vírus que contorna as defesas médicas de prevenção e resposta. Mas pensar, neste caso do Covid-19, nas duas forças - vontade e medicina: as duas juntas têm tornado as doenças maiores da História em doenças, com o tempo, menos agressivas. É isso que todos desejamos. Mas, para já, não se trata da História e do grande tempo, mas sim da urgência, do dia pareceu tão grande.
Desejo a todos os que fazem este jornal, de forma tão delicada, e a todos os leitores, boa saúde no recato possível e sereno. Que os nossos amigos, familiares, pais e avós continuem firmes.

3. Saúde e política. Recordo uma frase de Demóstenes para os Atenienses: «Em vez de vos agradar prefiro salvar-nos»."

Gonçalo M. Tavares, in A Bola

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