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quinta-feira, 5 de julho de 2018

E a tristeza ficava a sul

"De repente, ensinaram-me essa verdade cruel que eu preferia não ter aprendido: cortam-se as pontas das asas aos pássaros para que eles não consigam mais voar.

Sochi - Enquanto a noite cresce vou observando os pássaros. Dizem que esta era uma cidade de pássaros, continuamente migratórios, mas que o betão dos edifícios dos Jogos Olímpicos de Inverno os empurraram para céus que aqui não moram.
Há muitos anos, não sabia que se podia cortar o voo aos pássaros aparando-lhes as asas nas pontas. Há muitos anos, em Águeda, os rouxinóis cantavam de noite no jardim, perdidos por entre as folhas das ameixieiras, e eu ficava absorto na tranquilidade das estrelas, debruçado numa varanda virada a sul. Há muitos, muitos anos, era a sul que ficava a tristeza: era a sul que ficavas tu.
Há mais anos ainda aprendíamos na escola uma canção de pássaros: “Sabiá na gaiola/ Fez um buraquinho/ Voou, voou, voou, voou...”
Aprendíamos com ela a voar também, cada um batendo as suas asas por dentro.
Hoje estou aqui, analisando pardais: o fascínio dos pássaros.
Há muitos anos, eu tinha a certeza: raramente fazemos alguma coisa com a consciência de que é a última vez que a fazemos. Janelas fechadas, perras, resistentes, tão difíceis de abrir. Janelas para lá das quais voam os pássaros: “Sabiá no poleiro/ Foi cantar ao carapeteiro...”
Uma mosca patina com força na vidraça e o céu ganha tons demasiado turvos.
De repente, ensinaram-me essa verdade cruel que eu preferia não ter aprendido: cortam-se as pontas das asas aos pássaros para que eles não consigam mais voar.
A noite, a pouco e pouco. Estou cá no alto, debruçado numa varanda em horizontes de Cáucaso. Um homem de barba grossa enrosca-se em folhas de jornais velhos numa submissão triste de sonos por dormir. A escuridão em redor ignora-lhe a miséria enquanto a polícia não chega e o pombo procura, desajeitado, a protecção confortável dos zimbros. De súbito, como se acordasse de um pesadelo bruto, ergue os braços, aflito, a proteger o rosto de um bando de pássaros invisíveis e de asas por cortar."

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