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quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Se imaginasse a inveja que tenho de si

"Lembro-me de um dia, no quarto do meio de casa dos meus avós, devia ter uns três anos, ter perguntado ao meu pai qual era o melhor clube. Ele respondeu-me e esse passou a ser o meu clube. 
Enquanto soube o que era gostar de um clube, fui sempre um apaixonado por aquelas cores.
Depois veio o jornalismo, e tudo mudou.
O jornalismo é um assassino. Come-nos o coração. É um romanticida. O jornalismo mata-nos o amor pelo Benfica, pelo FC Porto ou pelo Sporting. Mata-nos a vertigem da paixão.
Uma pessoa entra no jornalismo e acontece-lhe mais ou menos como a Teixeira de Pascoaes, quando viu uma inglesa por quem se apaixonou. Meteu-se num barco para ir atrás dela, mas quando chegou a Inglaterra e conversou com ela a primeira vez percebeu que a paixão tinha morrido.
Quando se vê passar o futebol, fica-se apanhadinho de todo. É amor à primeira vista. Depois entra-se no jornalismo, conversa-se com o futebol, tem-se a primeira chatice, a segunda e a terceira, percebe-se que as pessoas são menos simpáticas do que pareciam, menos prestáveis e menos divertidas, vê-se os adeptos sempre zangados com os jornalistas, e a paixão morre também.
Acredite, leitor. É verdade.
Por isso hoje já tenho dificuldade em lembrar-me do que era ser adepto, do que era sofrer por um clube, do que era ficar entusiasmado com as vitórias e desiludido com as derrotas.
O que para um pai, é terrível.
Antes de ser jornalistas, eu sou pai. Gostava por isso de um dia dizer aos meus filhos qual é o melhor clube do mundo. Gostava de os poder levar à bola, de comungar com eles a mesma paixão, de construir num estádio algumas das melhores memórias que um pai pode ter ao lado de um filho.
Um campo de futebol é um campo fértil. Sem muito esforço crescem sentimentos bons, como o afecto, o fascínio e a emoção.
Há amizade e há partilha. Há comunhão, há identidade, há humanismo. Há camaradagem. Há solidariedade e fraternidade. Há empatia. 
Num campo de futebol há lágrimas e abraços sem fim.
Infelizmente eu já não vou ao futebol sem ser em trabalho. E mesmo que fosse, não ia valer a pena. Ia estar o tempo todo à procura de um ângulo para um artigo, a tentar racionalizar o jogo.
Ora o amor por um clube não é racional, bem longe disso. É até bastante irracional. Visceral e violento. O amor por um clube não se explica: vive-se à flor da pele.
Eu já não sei o que isso é, mas sei que dificilmente o vou viver ao lado do meu filho.
Se o leitor imaginasse a inveja que tenho de si."

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