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quarta-feira, 16 de outubro de 2019

A Paz sem vencedor e sem vencidos

"Começo por reler Sofia de Mello Breyner Andresen, uma Senhora assumidamente católica, mas que não pensava apenas com a religião ou a teologia, mas também com arte, poesia e política. Daí, a originalidade da sua poesia e da sua prosa: nada do que é humano lhes é estranho. O “homo sum, humani nihil a me alienum puto”, de Terêncio, nela ressoa, sem exaltações, como uma intelectual magnificamente serena. O culto da sobriedade, da harmonia, do equilíbrio, a delicadeza das tonalidades significam, nela (o que não é comum) movimento, diacronia, inovação, renovação. O continuísmo é um caso flagrante de miopia mental. No continuismo, não se descortina poesia, mas o gralhar dos “teóricos da petrificação e da repetição”. Ninguém sabe dialogar melhor com uma sociedade verdadeiramente alternativa do que uma poetisa, de projecção universal, como Sofia. Como se vê, no seu poema A Paz sem Vencedor e sem Vencidos: “Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos / A paz sem vencedor e sem vencidos / Que o tempo que nos deste seja um novo / Recomeço de esperança e de justiça / Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos / A paz sem vencedor e sem vencidos. / Erguei o nosso ser à transparência / Para podermos ter ,melhor a vida / Para entendermos vosso mandamento / Para que venha a nós o vosso reino / Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos / A paz sem vencedor e sem vencidos. / Fazei Senhor que a paz seja de todos / Dai-nos a paz que nasce da verdade / Dai-nos a paz que nasce da justiça / Dai-nos a paz chamada liberdade / Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos / A paz sem vencedor e sem vencidos”. Mas esta paz sem vencedor e sem vencidos não se constituirá como realidade presente, em todos os momentos da vida, enquanto cada um de nós não a pedir a Deus, fonte de todo o Bem, mas também não a exigir a si mesmo e à sua consciência de pessoa e de cidadão.
Aprendi em Teilhard de Chardin que, na Evolução universal do “cosmos”, da cosmogénese se passa à biogénese e desta à noogénese e da noogénese à cristogénese. Toda a Evolução é uma ascensão ininterrupta para o Espírito. Não sou um teórico da “revolução permanente” mas não escondo que, para mim, é da categoria cultural, que é a crise, que se anuncia um novo paradigma. Só que a deterioração de um mundo que envelheceu nem sempre é reconhecido, em determinadas instituições universitárias, onde proliferam os “lentes” que marginalizam qualquer fundamentada e generosa combatividade. Actualmente, na ciência, “a tendência global é no sentido da normalização de um número crescente de campos. Deste modo, embora rejeite qualquer visão teleológica ou ortogénica da ciência, Kuhn salienta a direccionalidade e a irreversibilidade da mudança científica. Ele parece elaborar isto ao mesmo tempo como uma descrição da verdadeira história da ciência e como um critério de maturidade científica” (Hermínio Martins, Hegel, Texas e outros ensaios de Teoria Social, Século XXI, Lisboa, 1996, pp. 69/70). E o sociólogo (neste caso, um sociólogo eminente) prossegue: “Mesmo que rejeitemos o conceito de paradigma como uma categoria da historiografia ou da epistemologia da ciência, em qualquer sentido estrito kuhniano, temos (…) de garantir não só que as crenças científicas mudam, mas também as normas procedimentais, os critérios de aceitabilidade e as formas de pensamento”. Repito o que me parece evidente: o mal não está em mudar de ideias, mas em não ter ideias para mudar. A superabundância de paradigmas atrapalha principalmente os que inventam “teorias do conflito” diante de tudo o que os obriga a um novo estado de espírito. E um estado de espírito novo significa sempre, no ser humano, um carácter histórico singular porque, em todo o sujeito humano, tudo é um apelo à cultura e à vida espiritual. Assim, a ética representa bem mais do que um conjunto de regras porque é, antes do mais, uma tomada de consciência do nosso lugar na história e do que nela nos cumpre realizar.
Mas, neste mundo, não se escutam apenas os apelos da Verdade e do Bem. Nele, também existe a mentira, a falsidade, a inveja, a calúnia. crimes de toda a ordem, enfim o mal. Na visão genial de Teilhard de Chardin, se vivemos num mundo em permanente evolução, visando condições superiores de complexidade, o mal é inevitável porque, num processo de crescimento, o imperfeito, o inacabado, o defeituoso é um dos momentos da evolução. Em poucas palavras: o mal existe, porque o bem não existe ainda. O mal pertence, estruturalmente, a um mundo em evolução. Assim, bem longe de significar uma alienação, a crença em Deus insinua-se em tudo o que existe, na Vida, no Homem, na Sociedade e na História, pois que tudo é um “tornar-se”, em direção à “cristogénese”, nas palavras de Teilhard de Chardin. Ao adquirir a fisionomia de uma cosmogénese e de uma antropogénese, o próprio mal se justifica, como dimensão histórica de uma via em direção ao “inteiramente Outro”. Nasce assim um novo humanismo, que não se confunde com o humanismo literário dos autores clássicos, ao jeito do Humanismo e do Renascimento. Um humanismo, aliás, que a Portugal chegaram ecos, principalmente durante o reinado de D. João III, o mais decidido monarca português, protetor das letras. E foram, então, muitos os portugueses que prezavam abastança de tempo, para o consagrar ao estudo dos clássicos greco-latinos. Para eles, a Idade Média era “a noite de dez séculos” e só era atual quem voltasse a Platão e Aristóteles e cultivasse o convívio com Erasmo. A Teilhard de Chardin, no entanto, o que lhe importava, sobre o mais, era uma pintura de cores vivas, donde se vislumbrasse o sentido da vida, ou seja, vivemos, pela transcendência física, social, política, espiritual, à procura do Absoluto. Ocorre-me o Jean Lacroix de Le Sens de l’atheisme moderne, editado pela Casterman: “A própria ideia de Deus não é uma solução já feita, mas exigência, para cada um de nós, em fazê-la”. Principalmente, através do mandamento supremo: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”…
Sílvio Lima, que fez uma exploração intelectual minuciosa e rigorosa, do desporto, escreveu: “o desporto é nuclearmente espírito, soberania do espírito (não há autêntico desporto, sem ascese) e pretende criar, não o perfeito animal, mas o perfeito cidadão, exemplar harmonioso de formosura moral e física”. E João Tiago Lima, seu discípulo (de perdurável brilho, acrescente-se) continua: “Daí decorre uma implicação obrigatória: porque se trata de uma actividade essencialmente espiritual, não há autêntico desporto, sem ascese” (João Tiago Lima, Estética e Desporto, Edições Afrontamento, Porto, 2016, p. 91). Assim, se bem penso, a própria competição desportiva, que tantas vezes reproduz e multiplica as taras da sociedade de mercado, também pode “destilar espírito”, também pode basear-se num conceito de género humano, onde todos possamos encontrar uma história, um destino e uma dignidade iguais e colectivos. O conceito de “acção”, para Blondel, é mais amplo, mais abrangente, mais complexo do que um simples movimento, ou um qualquer desempenho desportivo: “todo acto es en su origen una unidad indivisible en la que se encuentran la iniciativa humana y la contribución del universo” (M. Blondel, La Acción, BAC, Madrid, 1996, p. 235). E, porque os problemas da vida, tantas vezes escondidos aos olhos mais fundos e astuciosos, só vivendo se resolvem – é preciso viver, ou seja, é preciso amar, cantar, sofrer, esgadanhar a terra com os dedos até desenhar riscos de sangue, morrer exausto de expectativa, ou ressuscitar radioso de sol e de esperança… para poder resolvê-los! “Quem não pratica não sabe” e, porque sabe, não tem desculpas o seu absentismo, o seu comodismo, o seu indiferentismo. O valor de uma árvore avalia-se pelos frutos que dela nascem. No ato de construção de um mundo mais fraterno e mais justo, ergamos uma Paz sem vencedor e sem vencidos. Porque assim nasce um desporto novo? Não só. O desporto é menos causa que consequência."

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